segunda-feira, 26 de agosto de 2019

NOTAS SOBRE ERIC VOEGELIN



Um indivíduo lembrou-me hoje do porquê do meu afastamento das redes sociais. Em seus impropérios, acusou-me de algumas tolices, citando meu tratamento a Voegelin. Ele conseguiu atiçar minha ira, algo incomum nos últimos anos. 

Voegelin, do meu ponto de vista, tem algumas coisas que merecem ser levadas em consideração, mas jamais em sua totalidade. Considero-o não apenas como não sendo cristão, mas como um disfarçado anti-cristão. Seu tratamento calunioso à Reforma é de uma ignorância ímpia.

Eis alguns de meus escritos a este respeito:

- Voegelin zombava de Lutero como alguém despreparado para lidar com os problemas políticos nos quais se envolveu, como alguém envolvido em discussões metafísicas acima de sua capacidade e de ter destruído a ética e o intelectualismo. Tudo isto é falso. Na verdade, era Voegelin quem não tinha preparo para entender a Reforma, falando imprudentemente sobre ela. Voegelin despreza completamente 


(1) o papel da ética luterana em relação à Sola Fide, 
(2) a tradição agostiniana na qual Lutero estava inserido [Voegelin só pegava de Agostinho e Tomás o que era conveniente] e 
(3) as verdadeiras raízes do iluminismo e da crise de autoridade no Ocidente, que precedem Lutero e estão enraizadas na revolução epistemológica trazida pela introdução de Aristóteles.* 

Eric acusa o "anti-filosofismo" de Lutero de ser uma raiz do Iluminismo, mostrando definitivamente sua incompreensão da crítica luterana (erro em que não caem John Carroll e Kuehnelt-Leddihn em sua fase madura). Passa longe, ainda, de perceber a antítese absoluta entre a Reforma e o Iluminismo, algo que se torna visível a partir da obra de Herman Dooyeweerd. Nada é mais anti-Ilumimismo e anti-humanismo do que a Reforma Protestante. Pior de tudo, o tão badalado cientista político não pode ser considerado menos do que paranoico ao ler Lutero e Calvino e dizer que tudo ali é política, assim como qualquer marxista vê em tudo uma desculpa de discurso capitalista ou uma feminista que enxerga machismo nos artigos definidos da língua portuguesa. É impossível deixar de notar que Voegelin padecia dos defeitos que tanto criticava. [*NOTA: De acordo com a introdução do Vol. I da História das Ideias Políticas publicado pela É Realizações, Eric Voegelin parece ter voltado atrás em algumas considerações.]

*Estes pontos estão, inclusive, publicados no site oficial dos seguidores de Voegelin, em inglês. Confira pessoalmente.


- Voegelin também destila seu veneno repetindo os mitos que retratam Calvino como o "malvadão", "o ditador"... Ahã.


"Alister E. MacGrath, em sua pesquisa sobre as lendas e estereótipos sobre Calvino, argumenta que desde o tempo do retorno de Calvino a Genebra, aconteceu apenas uma execução por motivos religiosos (o caso infame de Michael Servetus), e que Calvino pediu aos oficiais da cidade que decapitassem em vez de queimar a vítima, pois o primeiro meio de execução era mais piedoso. Calvino, lamentavelmente, não prevaleceu nesse exemplo.
Além disso, a autoridade de Calvino em Genebra era apenas indireta, tomando forma de um conselheiro moral, na melhor das hipóteses. Ele não foi nunca um membro governante do concelho (na época da execução de Servetus, o concelho era até mesmo contrário à influência de Calvino), e de fato, não poderia ser membro no corpo governante mais alto, pois apenas cidadãos de Genebra (os nascidos em Genebra como cidadãos) é que podiam fazê-lo. [Nota minha: Calvino era natural da França e era CONVIDADO pela cidade. 
Segundo o julgamento de McGrath, 'a imagem de Calvino como o 'ditador de Genebra' não tem nenhuma relação com os fatos conhecidos da história [...] O concelho não tinha nenhuma intenção de renunciar em favor de alguém aos direitos e privilégios arduamente obtidos, muito menos a um de seus empregados - um estrangeiro sem direito de voto, a quem podiam mandar embora e expelir da cidade segundo lhes parecesse [...] Que a autoridade de Calvino em matérias cívicas era puramente pessoal e moral no caráter era demonstrado pela dificuldade que seus sucessores enfrentaram depois de sua morte.' (Alister McGrath, A Life of John Calvin: A Study in the Shaping of Western Culture)"


Tirei esta citação do livro "História das Ideias Políticas - Renascença e Reforma", Eric Voegelin, pela ed. É Realizações. O editor publicou-a para desmentir o quadro tenebroso pintado por Voegelin.

Além das informações acima, sabemos que o rigorismo em Genebra foi instalado antes de Calvino chegar, por Farel. O convite feito a Calvino tinha justamente a esperança de que ele fosse capaz de estabelecer ordem na cidade. Muitos dos conselhos de Calvino não eram escutados até pelas lideranças religiosas. Ele, por exemplo, não queria abolir o feriado do natal, quando alguns queriam. Ele intercedeu e conseguiu garantir a liberdade pras igrejas locais fazerem seu próprio calendário festivo. Dissertei muito mais sobre tal questão em outro lugar, respondendo ao texto de um seguidor de Voegelin aqui no Brasil.


A crítica que Lutero faz à razão não é, como Voegelin diz, um apelo ao irracionalismo. Ora, verdadeiramente anti-intelectual foi Francisco de Assis, que, como admite o próprio Eric, foi um dos responsáveis pela desintegração do Sacro Império. Lutero estava, a partir de uma visão metafísica cristã, criticando o conceito de 'razão' que o cristianismo assumiu no fim do escolasticismo, que pressupõe na verdade um pé na metafísica grega, como mostra Van Til em "A Survey of Christian Epistemology". Lutero havia se chocado com o estado do cristianismo quando visitou Roma anos antes da publicação das 95 Teses. Lutero está decretando, ali, a superioridade de Deus contra a razão humana autônoma, que é, despida da pompa com a qual é louvada, a sofisticação da epistemologia da serpente no Éden, herdada por nós em nossa natureza pecaminosa. Interpretar o mundo "sem Deus" foi o instrumento básico da Queda. Até o não-cristão John Carroll, um sociólogo, entendeu isso. Carroll enxerga a Reforma Protestante, como muitos dos nossos teólogos, como a força mais radicalmente anti-humanista que o Ocidente viu nos últimos séculos. Vejam também o livro recentemente publicado pela Editora Monergismo, "A Batalha Central da Reforma", de Jean-Marc Berthoud. O verdadeiro nominalista era Erasmo de Roterdã.


- Eric Voegelin é um pós-moderno, influenciado pela neo-ortodoxia de Barth e Bultmann. A crítica dele contra Calvino se torna mais clara em "História das Ideias Políticas", onde desdenha da sistematização feita por Calvino nas Institutas, já que, nas palavras de Voegelin, parafraseadamente, "tal empreitada é impossível." Diz ele, a Escritura é "paradoxal". Ora, de onde vem isto? Karl Barth. Isso é teologia pós-moderna, às portas do irracionalismo. Parece muito claro que Voegelin quer achar defeitos em Calvino, mas não consegue: admite a capacidade de "interpretação inescrupulosa" de Calvino. Admite que Calvino respondeu à problemática da justificação pela fé. No máximo, diz que Calvino não deu uma resposta convincente sobre o pedobatismo. Depois, tenta uma correção desastrada da doutrina da predestinação, ignorando cinicamente que Tomás e Agostinho também defendiam-na.

Em "Nova Ciência", Voegelin utiliza-se de um DETRATOR dos puritanos para atacá-los, além de exagerar sua interpretação até mesmo do marxismo. Esta última acusação foi feita por Hans Kelsen (autor com quem não tenho muita afinidade), que foi seu professor.

Eis uma citação de Kelsen.


"De acordo com a Nova Ciência da Política, não é só a natureza da modernidade que deve ser interpretada como gnosticismo; mas também a Reforma, com a qual a era moderna [supostamente] começa, deve ser "entendida como a invasão bem sucedida das instituições do Ocidente por movimentos Gnósticos." Como a Nova Ciência da Política justifica esta revolucionária re-interpretação da Reforma? Voegelin declara: "O evento é tão vasto em dimensões que nenhuma pesquisa mesmo de suas características gerais pode ser abordada nessa leitura." Consequentemente ele restringe sua tarefa a uma análise de "Certos aspectos do impacto Puritano na ordem pública da Inglaterra." Estes aspectos são ideologias religiosas produzidas dentro da esquerda do movimento Puritano com o propósito de legitimar a Revolução Inglesa do séc. XVI. Voegelin admite que "O Puritanismo como um todo não pode ser identificado com a esquerda.", mas ele justifica sua seleção de materiais pela afirmação de que ele não intenta "fazer uma avaliação histórica do Puritanismo", que ele está preocupado apenas "com a estrutura de ideias e experiências Gnósticas"; e esta estrutura pode ser encontrada no material que ele escolheu. Mas mesmo se ele tivesse demonstrado o caráter gnóstico da ideologia religiosa do Puritanismo de esquerda - o que ele não fez - sua incrível interpretação da Reforma, da qual o movimento Puritano era apenas um dos muitos componentes e não o mais decisivo, como a erupção revolucionária de movimentos gnósticos permaneceria completamente infundada. A interpretação do Puritanismo feita por Voegelin não é uma análise do movimento em si, mas da famosa descrição que Hooker fez deste movimento. A partir dessa descrição, Voegelin reúne o fato de que os Puritanos em sua crítica às condições da ordem social existente insistiram em ter uma "causa", e que o termo "causa" era de uso recente e provavelmente inventado pelos Puritanos. Ter uma "causa" em ordem de começar um movimento é interpretado por Voegelin como uma "formidável arma dos revolucionários Gnósticos". Como este "ter uma causa" manifesta-se? "Em ordem de avançar rumo à 'causa', o homem que tem esta vontade, 'ouvindo a multidão', suporta em severo criticismo dos males sociais e em particular da condução das classes altas... O próximo passo será a concentração de vontade popular no governo estabelecido. Esta tarefa pode ser psicologicamente realizada atribuindo-se toda a culpa e corrupção, como ela existe no mundo por causa da fragilidade humana, à ação ou inação do governo. ... Depois de tal preparação, o tempo estará na estação correta para a recomendação de uma nova forma de governo como o "remédio soberano de todos os males". É absolutamente impossível descobrir o que há de Gnóstico em ter uma causa desta forma, que é o modo de qualquer movimento político direcionado contra o governo estabelecido e especialmente de um movimento revolucionário. Não é especificamente Puritano, e não é sequer místico. 
Outro sintoma de que o caráter Gnóstico do movimento Puritano é que ele "confia em uma literatura como fonte", a saber, a Sagrada Escritura, ... [Mas] Esta é a atitude de todo movimento político ideológico que é desenhado pela Teologia Cristã, sem qualquer implicação gnóstica ou mística. 
O "passo decisivo na consolidação da atitude Gnóstica" é, de acordo com Voegelin, descrita por Hooker quando ele acusa os Puritanos de "persuadir homens crédulos e super-capacitados de tais erros agradáveis, de que isso é uma iluminação especial do Espírito Santo, por onde eles discernem aquelas coisas na Palavra, que outros leitores não discernem [Nota: Lembremos que Voegelin não acredita na infalibilidade da Escritura e também duvida da possibilidade de extrair-se qualquer sistematização coerente dEla, visto que ele entende-a como contendo afirmações paradoxais inconciliáveis - ou seja, um incrédulo]." Novamente não há nada de Gnóstico no objetivo de um líder religioso em fazer seus seguidores acreditarem que ele é iluminado por uma autoridade transcendente [exatamente como sempre houve na Igreja e existe na autoridade do Magistério e do Papa 'infalível']. A "iluminação especial do Espírito Santo" na qual os Puritanos interpretam a Escritura para basear sua autoridade não tem nada a ver com a experiência mística de união com Deus [do Gnosticismo]. Apenas se Voegelin pudesse provar que tal experiência mística moveu uma parte essencial do movimento Puritano, sua interpretação deste movimento como Gnóstico no sentido místico seria justificável. Mas tal prova é impossível pela simples razão de que nenhum movimento social pode ter tal caráter místico, já que a experiência mística - como apontada - em sua própria natureza um caráter anti-social ou pelo menos a-social. Um verdadeiro místico está longe de interessar-se em uma crítica ou reforma da sociedade, que era a preocupação usual do Puritanismo. 
[...] 
Reconhecer o Deus que vem cavalgando sobre as montanhas na dialética Marxista é um dos exageros metafísicos que conduzem uma não muito afortunada parte na interpretação de Voegelin do fenômeno social. Mas mesmo se a dialética Marxista fosse idêntica à do Deus dos Puritanos e a Revolução Russa apenas uma repetição da Revolução Inglesa, embora tenha tido um resultado formal num parlamentarismo liberal enquanto aquela tenha dado em uma ditadura totalitária, não seria a menor razão pra falar de ambos como de revoluções gnósticas e para designar a ditadura do proletariado como um conceito de "Gnosticismo Tardio". Quão arbitrariamente Voegelin usa o termo "Gnóstico" torna-se evidente em suas afirmações a respeito de "guerras gnósticas". Ele diz: "A Revolução dos Gnósticos tem por objetivo o monopólio da representação existencial. Os Santos podem prever que o universalismo de seu clamor não será aceito sem luta por um mundo de escuridão, mas que ela produzirá uma aliança universal do mundo contra eles." É óbvio que isto aplica-se somente à Revolução Russa, não à Revolução Inglesa, até porque apenas aquela e não esta - a despeito de sua ideologia apocalíptica - engajou-se numa revolução mundial, i.e., no estabelecimento revolucionário de uma nova organização social composta pelo todo da humanidade. A diferença fundamental entre as duas revoluções é obscurecida ao rotular-se ambas como Gnósticas. Apenas sobre a base de uma suposição injustificada é que a Rev. Russa é uma revolução "gnóstica", que é dizer na base de uma terminologia infundada, que Voegelin pode falar da divisão em dois mundos como do "misticismo Gnóstico de dois mundos." A divisão de dois mundos é resultado da Revolução Russa, mas não foi de forma alguma o resultado da revolução "gnóstica" Puritana."  
("A New Science of Politics? Hans Kelsen's Reply to Eric Voegelin's New Science of Politics," pág. 93-99.)


Para ser sincero, eu nem sei se Voegelin acredita nas doutrinas cristãs como verdades objetivas. Sua filosofia da história é definitivamente uma filosofia da história humanista e relativista: a história é marcada, não pela providência divina rumo a um fim determinado, mas por "saltos do ser". A condição existencial do homem é marcada por esses saltos, através dos quais o homem alcança a consciência existencial "correta". 


O legado de Voegelin é usado e abusado conforme a conveniência. Voegelin é muito suspeito ao fazer uma crítica à transubstanciação, que ele julgou como uma "desnaturação" do símbolo da ceia. Ele critica impiedosamente todos que defenderam essa doutrina, mas quando chega a vez de Tomás, em "História das Ideias Políticas", ele diz apenas que "talvez devêssemos encontrar o erro ATÉ no mestre Tomás". Super imparcial. (risos)

Voegelin também é contraditório ao falar de Francisco de Assis. Para atacar a Reforma, ele é impiedoso. Chama Lutero e os outros de anti-intelectuais, mesmo que não o fossem. Mas quando trata-se de Francisco de Assis, verdadeiro anti-intelectual, Voegelin parece adoçar sua crítica com a atitude dos devotos eunucos. Resta alguma honestidade onde ele mostra, com bastante relevância, que o movimento revolucionário em seu tom comunista surge entre franciscanos radicais, e que São Francisco foi "o símbolo da revolução".

7 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Aguardo mais artigos.O trabalho que você tem feito está muito bom

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  3. Olá poderia me explicar este ponto "revolução epistemológica trazida pela introdução de Aristóteles e crise de autoridade do ocidente ", tenho muito interesser, ja vi algo sobre, mas gostaria de uma artigo ou livro sobre.

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    1. Boa noite, amigo. Me desculpe pela demora em responder. Infelizmente não conheço um livro específico que trate somente da revolução tomista. Até o católico romano Christopher Dawson fala sobre isso de forma muito superficial em "Progresso e Religião".

      Quem fala disso de forma superficial e certeira (mas com um erro um pouco básico que precisa de correção) foi Francis Schaeffer em "A Morte da Razão". Livro pequeno e fácil de ser lido.

      Um livro que trata desse assunto de forma mais profunda (e, ao mesmo tempo, mais difícil de entender) é Raízes da Cultura Ocidental, de Herman Dooyeweerd.

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    2. Se for a vontade de Deus, eu mesmo pretendo falar sobre esse tema em um livro. É um projeto meu. Mas o livro não será específico sobre Tomás de Aquino.

      Posso citar diversos autores que reconhecem a revolução tomista. Até alguns católicos, como o Frei Josaphat. Mas Josaphat era meio esquerdista e os tradicionalistas apelam a isso para desacreditar o que ele disse no livro. O problema é que o que Josaphat diz é bastante objetivo: "Tomás de Aquino era o modernista de seu tempo".

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    3. Agradeço pela resposta, de fato na escolastica já se via génese da filosofia moderna seja com Tomás ou Duns Scoto. Sem um absoluto perde-se o sentido dos particulares, em "Como viveremos?" e "Morte da Razão" Shaeffer demonstra tal fato. Graça e paz.

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    4. Espero o livro ou artigos sobre o tema Deus te abençoe

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