sábado, 30 de maio de 2015


A REVOLUÇÃO CIVIL - PARTE 3
Por R. J. Rushdoony.

James Barros, em No Sense of Evil: The Espionage Case of E. Herbert Norman (1986), conta a história de um Marxista canadense. Norman estava conectado com a rede de espionagem na Universidade de Cambridge, que incluía Anthony Blunt, Guy Burgess, Donald Maclean, e Kim Philby. A despeito de algumas conexões conhecidas de Norman, ele continuou a apreciar da confiança de homens em altas posições, notavelmente Lester Pearson.

A preocupação de Barros era entender por que isto era possível. Norman e outros tinham um fundo de modernismo religioso e o evangelho social. Porque as agências americanas estavam investigando Norman, ele cometeu suicídio em 4 de abril de 1957, porque a exposição pública, não o senso de pecado ou culpa, era o maior medo que espreitava-o.

O problema básico de Norman, como aquele de muitos homens que confiaram nele apesar de suas conexões dúbias e seu Marxismo, era a falta de senso do pecado e do mal, então aqueles homens religiosamente assumem que sua motivação é boa, e que suas intenções são benéficas. Eles são portanto ignorantes sobre si mesmos e sobre os outros.

Essa ilusão sobre o homem é básica para a Revolução Civil. Com a Renascença e então com o Iluminismo, os homens viram a si mesmos, não como pecadores, mas como deuses em potencial, como gigantes sobre a terra. Grandes coisas seriam realizadas pelo homem liberto das barreiras de uma Cristandade "repressiva". O homem, ao invés de ver-se a si mesmo como um pecador necessitado da salvação de Deus através de Cristo, estava vendo a si mesmo como o autor que estabeleceria uma prodigiosa nova ordem mundial através do estado, junto com a ciência. A Revolução Civil então rebelou-se contra a doutrina do pecado original e da sangrenta expiação de Jesus Cristo. John Locke negou o pecado original, o que significava implicitamente tornar a expiação desnecessária.

O estado coerentemente mudou de fundamentos. Para o Cristianismo, o estado era um ministro sob Deus, um diaconato. Seu chamado é para administrar a justiça, i.e., a Lei de Deus. O estado então tem um dever de ser justo no intuito de administrar a justiça. Na visão moderna, esse dever foi negado porque, em vez de um dever de ser justo, o estado é visto como a justiça encarnada. Quanto mais humanista é o estado, mais claramente ele é identificado com justiça, e mais claramente a justiça torna-se um monopólio estatal. O estado socialista desenvolvido, portanto, insiste em um monopólio sobre a justiça, governo, educação, educação, medicina e muito mais.

Em tal estado, o evangelho social floresce como o servo do estado. O evangelho social é realmente um evangelho civil; ele defende a salvação pelo estado e suas leis, e sua esperança muda de Deus para o estado. Isso tem um impacto maior sobre sua doutrina da expiação. Nos anos 30, um pastor que adotou o evangelho social começou a pregar também contra a doutrina ortodoxa da expiação de Cristo; ele ridicularizou a linguagem usada por outros antes que precederam-no, chamando de "teologia de açougue" a pregação da expiação pelo sangue de Cristo. Esta justaposição do evangelho social ou estatal e a condenação da doutrina da expiação pelo sangue era lógica e essencial. Se a salvação é um ato do estado, o trabalho de homens que eram essencialmente bons e que se unem para criar um mundo melhor, procurar uma mudança no homem através da expiação de Cristo antes de procurar no evangelho civil é não apenas falso, mas ilusório. Como um resultado, quando a revolução civil floresce, o Cristianismo está sob ataque.

No Salmo 43, o salmista ora a Deus por justiça contra uma nação descrente, dizendo: 


1. Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha causa contra a nação ímpia. Livra-me do homem fraudulento e injusto.
2. Pois tu és o Deus da minha fortaleza; por que me rejeitas? Por que ando lamentando por causa da opressão do inimigo?
3. Envia a tua luz e a tua verdade, para que me guiem e me levem ao teu santo monte, e aos teus tabernáculos.
4. Então irei ao altar de Deus, a Deus, que é a minha grande alegria, e com harpa te louvarei, ó Deus, Deus meu.
5. Por que estás abatida, ó minha alma? E por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, o qual é a salvação da minha face e Deus meu.

O salmista vê injustiça em todo o redor, na igreja e no estado também. Sua necessidade de ser conduzido ao "santo monte" e aos tabernáculos de Deus é devida à expressão visível da corrompida adoração a Deus. Como consequência do fato de a nação e seu povo, civil e eclesiástica, ser de homens corruptos e não-redimidos, sua esperança não pode estar neles. Ele diz a si mesmo, "Espera em Deus", i.e., como contra a igreja e o estado.

A interpretação do "evangelho social", claro, é diferente. Então, The Interpreter's Bible viu este salmo como uma prece pela defesa contra "inimigos através da purificação e restauração da adoração no Templo." [1] Os advogados do evangelho civil estão prontos para ver um estado fascista como mal, mas não um estado verdadeiramente socialista e democrático. O pecado, de qualquer forma, não é um monopólio da esquerda ou da direita, mas comum a todos os homens.

Mais do que isso, o evangelho civil insiste em reduzir a expiação de Cristo, na melhor das hipóteses, a um exemplo moral de auto-sacrifício pela causa humana. Consequentemente, a doutrina ortodoxa é descrida como moralmente errada. Os Unitaristas sem seus anos recentes eram especialmente enfáticos:


"Cristo nos salvou, tão longe quanto seus sofrimentos e morte são considerados, através de sua influência moral e poder sobre o homem; o grande apelo que eles fazem, não para Deus, mas para a consciência e o coração do pecador; então auxiliando-o no grande trabalho de trazê-lo à reconciliação ou reconciliando-o com seu Pai nos céus... A reconciliação é realizada por Cristo; por tudo aquilo ele era e é; tudo o que ele ensinou, fez e está fazendo; e através de tudo o que ele sofreu por nossa causa. Não por uma coisa apenas, mas por tudo isso nós somos salvos." (Farley, Unitarism Defined, 1860). O sacrifício de Cristo não foi feito para Deus, porque Ele não precisa ser propiciado ou misericordiosamente redimido, mas simplesmente com referência ao homem apenas, para seu bem; a justiça de Deus não precisa de pacificação. "Não pode haver maior ou mais cegante heresia do que aquela que ensinasse que o sacrifício de Cristo, ou qualquer sofrimento em favor de virtude e pecados e tristezas humanas, é estritamente substitutivo, ou literalmente vicário. As antigas teologias, perplexas e obscurecidas pela lógica metafísica e escolástica - fruto do orgulho acadêmico e do amor pelo domínio eclesiástico - laboraram para provar e ensinar que Cristo, em sua pequena agonia sobre a cruz, realmente sofreu as dores do pecado e aborreceu a verdadeira totalidade de toda a angústia do remorso e da culpa por miríades de pecadores, através das eras da eternidade... Nosso senso de justiça e bondade ,tanto quanto Deus em si mesmo são considerados, é vastamente mais chocado pelas penalidades apropriadas do pecado sendo colocadas sobre o inocente antes deles terem sido deixados com suas culpas, onde elas pertencem... A verdade é, a substituição literal das penalidades morais é uma coisa absolutamente impossível! Punição vicária, em seu sentido técnico e teológico, é proibida exatamente pelas leis de nossa natureza e constituição moral." (Bellows, Restatements of Christian Doctrine.) [2]

Esse era o ponto repetidamente levantado, que a expiação vicária era moralmente errada porque ela pune o inocence pelos pecados dos culpados, i.e., Cristo sendo punido para redimir os homens pecadores. O evangelho civil, contudo, não abandonou o sofrimento vicário e a expiação de um inocente: ele meramente transferiu isso de Cristo para todos os homens que devem agora sofrer. Para ilustrar, uma alta porcentagem de cidadãos americanos nos anos 80 são descendentes de imigrantes que vieram para os EUA depois de 1865 e viveram, até anos recentes, em áreas sem quaisquer negros. Aqueles americanos cujos antepassados estavam aqui antes de 1865 contam-se aos milhões, cujas famílias enviaram um homem para a União em 1861; alguns perderam suas vidas. É tudo a mesma coisa, o evangelho civil e social insiste em advogar que a culpa pela escravidão negra está sobre todos os americanos brancos. Eles devem pagar impostos em reparação; eles devem sentir culpa pelos pecados do passado, e assim por diante, a despeito do fato de que muitos daqueles imigraram de tiranias inefáveis para os Estados Unidos, trilhado sua saída das favelas em poucos anos, e fizeram muito para ajudar outros. A expiação humanista demanda sofrimento vicário, bem como um pagamento monetário. Alguns negros lutaram pela liberdade; uma quantidade muito maior de brancos o fizeram, e morreram por isso.

A expiação vicária de Cristo e o poder da regeneração fazem do homem culpado e pecador uma nova criatura. O sofrimento vicário imposto pelo estado não tem poder regenerador; em vez disso, ele destrói aqueles que ele pune tanto quanto aqueles que ele procura ajudar. A expiação estatista é destrutiva, não regenerativa, porque o estado é um falso salvador. Como Machen observou no começo desse século [séc. XX],


"A Graça de Deus é rejeitada pelo liberalismo moderno. E o resultado é escravidão - a escravidão da lei, a cadeia miserável pela qual o homem compromete-se com a tarefa impossível de estabelecer sua própria justificação como uma base para a aceitação de Deus. Isso pode parecer estranho à primeira vista que o 'liberalismo', cujo nome significa exatamente liberdade, deveria na verdadade ser miserável escravidão. Mas o fenômeno não é realmente estranho. A emancipação da vontade abençoada de Deus sempre envolve a cadeia a alguma tarefa maior." [3]

A história do movimento do evangelho social ou civil e suas contribuições para a ascenção da tirania precisam ser registradas; na antiga Rússia, na Alemanha pré-Nazista, e em qualquer lugar do Ocidente onde essa fé humanista tenha precedido a ascenção do estatismo.

Uma das caricaturas que já foram comuns feitas por céticos a respeito da teologia Cristã era sua ostensiva incompreensibilidade. Nos anos 30, Harold Anson, Mestre do Templo, falou de sua frequência como estudante na capela de leituras em Clifton pelo dirigente:


"Eu imagino que devem ter sido cerca de seis dessas (leituras), e eu esperava, de tudo o que eu vim conhecer sobre aquele homem memorável, que elas eram admiáveis. Ai de mim que tudo o que eu posso lembrar é que ele nos falou que nós não precisávamos acreditar no Credo de Atanásio e que esse Credo não era usado em nossa Escola da Capela, mas que se o Bispo o obrigasse a usá-lo, ele seria cantado como um hino. Isso pareceu-me um caminho tão ingenuo de evadir-se de um dogma, que sempre me vem à memória. Eu acho que devo ter um desgosto hereditário pelo Credo de Atanásio. Minha mãe sempre ficou em silêncio quando ele era repetido. Meu avô, Cuthbert Ellison, um personagem excêntrico, eu imagino, costumava dizer em alto e bom som quando aquele Credo estava sendo recitado, 'O Pai incompreensível, o Filho incompreensível, o Espírito Santo incompreensível, e a coisa toda incompreensível!'"

Anson, um homem gentil, simplesmente deu voz a uma fé vaga que não tem nem claridade nem verdade verdade; sua teologia, entretanto, era compreensivel porque ela era tão deficiente e vazia. O estado moderno e suas leis, contudo, tornou-se progressivamente incompreensível. Porque Deus é infinito, onipotente, eterno, onisciente, e mais, Ele é necessariamente tão além de nossas mentes limitadas, criadas, e temporais que Ele é incompreensível para nós, embora Ele revele-se verdadeiramente em Cristo e em sua Palavra escrita. Ele conta-nos, "meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos" (Is 55:8). A incompreensibilidade de Deus reside em Sua transcendência. A incompreensibilidade do estado é aparente a qualquer um lendo atos do Congresso, formuários de imposto, e mais, mas ela é a incompreensibilidade da estupidez, avareza, e frequentemente do mal, não de um status superior. Todos os falsos deuses morrem, quando os homens começam a olhar sobre eles com repugnância moral.

A Revolução Civil começou como uma forma de redenção para o homem, como um significado a respeito da verdadeira ordem pelo homem bom e racional. Ela tornou-se, em vez disso, o opressor do homem e uma fonte de desordem. À medida em que os homens tornam-se membros vivos da ordem de Deus, a Revolução Civil desvanece.

(Artigo extraído de "Sovereignty", de Rushdoony. Págs. 270-276)

1. William R. Taylor, "Psalms", in the Interpreter's Bible, vol. 4 (New York, NY: Abingdon Press, 1955), 225.
2. John F. Hurst, History of Rationalism (New York, NY: Carlton & Porter, 1866), 550-51.
3. J. Greshan Machen, Christianity and Liberalism (Grand Rapids, MI: Eerdmans, [1923] 1946), 144.
4. Harold Anson, Looking Forward (London, England: Religious Book Club, n.d.), 54.

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

sexta-feira, 29 de maio de 2015



A REVOLUÇÃO CIVIL - PARTE 2
por R. J. Rushdoony.

No dia 7 de outubro de 1984, vinte e quatro freiras assinaram uma declaração no The New York Times afirmando que a oposição ao aborto não é "a única posição legitimamente Católica." O Vaticano ordenou aos superiores delas que assegurassem sua retratação ou seu afastamento. No dia 9 de junho de 1988, duas das freiras, Barbara Ferraro e Patricia Hussey, encontraram a imprensa para elogiar seus superiores por terem desafiado a doutrina do Vaticano, e elas chamaram isso de "uma enorme vitória para todas as mulheres", especialmente as freiras. As duas freiras declararam, "A vitória reafirma para nós a convicção de que, entrando em um comunidade religiosa, nós não desistimos de quem somos como seres humanos sensíveis e pensantes." Padres, monges, freiras e bispos têm desafiado o Vaticano por séculos, mas as razões para esse desafio mudaram. O desafio agora reflete a Revolução Civil. Mais do que isso, o desafio está baseado no clamor de uma moralidade mais verdadeira, e o Vaticano é acusado de falhar em acomodar-se a um padrão moral mais ostensivamente iluminado.

Por trás disso está a Revolução Civil. A fé bíblica é uma fé pactual. Um pacto é um acordo de lei entre dois partidos. Pactos entre iguais significam um acordo nos termos da lei e uma igual entrada como um caráter da lei acordada. Um pacto entre desiguais é um pacto de Graça por onde o superior graciosamente dá sua lei para o inferior. O Pacto de Deus com o homem é então um Pacto tanto de Graça quanto de Lei. Porque a Lei é um pacto religioso, Deus não permite pactos ou tratados entre Seu povo com nações descrentes. (Ex 23:31-33; 34:12-16; Dt 7:1-4).

Com o Iluminismo, o homem secularizou a doutrina do pacto em um contrato social, um tratado entre iguais. John Locke (1632-1704) desenvolveu esse conceito extensivamente. Seu pensamento tinha raízes na visão que Aristóteles tinha do homem como um animal político, cuja necessidade era viver em termos de leis e políticas civis feitas mediante acordo. Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) aderiu a essa doutrina.

O contrato social foi formado para proteger o indivíduo e seus direitos de propriedade. Uma consequência disso, como na Inglaterra, foi a passagem de numerosas leis requerendo a pena de morte até para os furtos menores. Uma era que orgulhou-se de ter "superado" a intolerância religiosa mostrou uma intolerância muito maior naquilo que se referia à violação do direito de propriedade. O século XX transferiu a intolerância para o dissidente político-econômico e assassinou milhões enquanto sustentava sua superioridade contra a "era da fé"!

John Locke,  em seu Ensaio Sobre o Entendimento Humano, livro 2, capítulo 7, negou o pecado original e defendeu o controle racional do homem e a responsabilidade por suas ações. Desde então a sociedade representa, não uma ordem caída, mas um contrato social, um consenso racional dos homens. O governo civil é portanto um contrato radical: ele representa a ordem racional. Muito depois, Hegel veria o estado como deus encarnado na terra, como um Geist ou Espírito encarnado. Para Locke, o estado era razão, e a esperança de Locke para a salvação humana era num efeito civil. O fim principal do governo civil era, para Locke, a proteção da propriedade. Nos termos de sua fé, a Inglaterra passou lei após lei pedindo pela pena de morte por roubo, e por qualquer infração dos direitos de propriedade. Para Locke, a liberdade significava ter regras para viver pela legislação de um governo civil. Para Locke, liberdade do poder absoluto e arbitrário significava governo representativo. Para Locke, a ordem civil era feita de homens proprietários. Para ele, os direitos naturais eram direitos racionais, e o contrato social era a ordem da razão. A ordem da razão era a vontade da maioria. Uma minoria dissidente poderia queixar-se de que seus direitos estavam sendo violados. De acordo com Locke, um


"governo deve ser pela decisão legislativa majoritária, a menos que um número maior do que a maioria seja especificamente estipulado. Isto segue a intenção do Contrato Social ou 'pacto original.' Mas como nós entendemos que o homem entra nesse acordo? Por uma declaração expressa - ou implícita. E qual é o sinal de um acordo implícito? A resposta é a residência; o acordo durou tanto tempo quanto dura a residência. 'Ele está livre para ir e incorporar-se a qualquer outra comunidade, ou entrar em acordo com outros para começar um novo in vacuis locis (nos espaços bem abertos)" [2]

Desde os dias de Locke, o estado como a personificação da razão moveu-se da proteção da propriedade para a taxação e até mesmo o confisco da propriedade por objetivos racionais da revolução civil. Nas democracias ocidentais, impostos pesados são a regra; nos estados Marxistas, o confisco normalmente prevalece. Esses passos são tomados pelo estado como aquilo que a razão requer.

É claro, depois de Rousseau, a vontade de Deus foi substituída por uma nova infalibilidade, a vontade geral das pessoas. Desde que essa vontade geral seja desconhecida até que seja expressada, o estado não tem critério definido exceto um suposto desenvolvimento da vontade geral.

Em consequência da substituição da vontade de Deus pela vontade geral, há uma mudança da ênfase dos deveres do homem em relação a Deus para os direitos humanos. Direitos substituíram deveres, o foco da sociedade mudou de produção para consumo. O homem vive como um consumidor, não como uma criatura feita à Imagem de Deus e de quem se requer o serviço a Deus de todo o coração, mente e ser. Não é Deus quem deve ser servido, mas o homem e o estado. Deus como legislador foi substituído pelo homem. Em 1962, Robert M. Hutchins disse:


"... eu acredito que o governo é indispensável, ao contrário de Kropotkin e os anarquistas, e eu acredito que a lei é a expressão da razão e não a expressão do poder arbitrário. Eu faço violenta oposição à ordem dominante na maior parte das escolas de direito desse país, e também da Inglaterra, segundo a qual a lei é a vontade da côrte ou de que a lei é o comando do soberano.

A lei deve ser julgada em termos de bem comum. A lei, portanto, é boa ou má em termos de fazer ou não aquela contribuição. O governo é o símbolo essencial através do qual a comunidade política move-se no que diz respeito ao bem comum. Se qualquer governo em particular ou qualquer lei em particular ou em qualquer sistema em particular não contribui para o bem comum, então o que deveria ser feito é descobrir por que o governo e a lei não contribuem para o bem comum; e o governo e a lei devem ser mudados." [3]

Note que para Hutchins a lei era "a expressão da razão". O teste da racionalidade da lei para ele era "sua contribuição para o bem comum" porque, não a igreja, mas o estado, "é o significado essencial através do qual a comunidade política move-se no que diz respeito ao bem comum." Como nós sabemos quando o estado falha para o bem comum, através de qual padrão? E se o estado decretar a morte de todos os judeus, ou de todos os Cristãos? Por que Hutchins nunca preocupou-se com o assassinato do clero na Rússia, e de muitos fiéis?

O problema desde Locke até Rousseau, e no presente, é a rejeição da lei de Deus como o padrão de justiça e a rejeição da doutrina do pecado. Em consequência da desconsideração do pecado do homem, a razão humana é defendida como sendo boa quando na verdade ela serve aos propósitos do homem pecador. O pecado é o padrão do homem caído: ele sente prazer nisso, vê isso como auto-expressão, e como um símbolo para o poder.

Alguns iluministas podem ser citados. Durante a Grande Depressão dos anos 30, homens em posições estratégicas nas agências federais aceitaram suborno na forma de submissão sexual de funcionárias mulheres. Pouco depois da guerra, fui informado de um oficial que descreveu tal atividade como a melhor forma de suborno, sem dinheiro para ser rastreado, e sem vítimas externas. Esse é o estado como razão e justiça?

Um alemão contou-me, no fim da Segunda Guerra Mundial, quando a entrada nas universidades era difícil, e as listas de espera eram longas, que o registro de jovens mulheres era alto, e praticamente todas eram bonitas. A entrada era por suborno sexual. Essa é a universidade como a vida da razão?

Friedrich Heer, o historiador austríaco, reportou que, depois da Primeira Guerra Mundial, "nos portões de Vienna, um padre foi afastado porque ousou pregar contra o jus primae noctis (o direito à primeira noite com uma mulher camponesa recém-casada no feudo) que era requerido do lorde que era seu patrão eclesiástico." Esse era um sistema longamente aceito tanto por camponeses quanto por lordes. [4]

Se a prioridade de Cristo e do Deus Triúno sobre todas as esferas da vida é removida, então a anarquia moral e social começa a prevalecer. A alternativa ao reino de Deus é o reino do pecado. A Revolução Civil negou a prioridade de Deus e de Sua Lei em favor das razões do estado. O estado como a ordem do homem racional corroeu minuciosamente cada área da vida para criar uma instalada desordem. A Revolução Civil exaltou o estado, mas ela está produzindo anarquia.

(Artigo extraído de "Sovereignty", de Rushdoony. Págs. 265-269)

1. "Pro-choice Nuns Praise Decision Against Ouster", Stockon (California) Record, June 10,1988, A-8.
2. George Catlin, The Story of The Political Philosophers (New York, NY: Tudor Publishing Company, 1939), 295-96.
3. Robert M. Hutchins, with Joseph P. Lyford. A Conversation: The Political Animal (Santa Barbara, CA: Fund for the Republic, 1962), 16.

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

quarta-feira, 27 de maio de 2015


A REVOLUÇÃO CIVIL - PARTE 1
por R. J. Rushdoony.

O Concílio de Constança encontrou-se (1414-1418) supostamente para reformar a igreja. Na verdade, ele assegurou a corrupção da igreja até bem depois da Reforma. O Imperador Sigismundo, que controlou o Concílio, era ele mesmo um homem muito necessitado de reforma. O que os reis imperadores queriam menos do que tudo era uma igreja forte; eles preferiram uma igreja corrupta e fraca com o propósito de assegurar o próprio poder. O reino do Vaticano progressicamente tornou-se administração, arquitetura, arte, e, com o tempo, estado papal. Era mais fácil para os papas ser cabeças do estado do que de uma igreja que ameaçava reis com ultimatos morais. Uma Europa Erastiana estava em construção, uma em que o estado controlou a igreja dentro de seus domínios.

Na Inglaterra, em 1514-1515, as pessoas de Londres manifestaram-se contra a igreja por causa do assassinato de Richard Hunne, considerado herege, na prisão do bispo em Saint Paul. Charles VIII, Louis XII, e outros monarcas franceses eram campeões de uma igreja Galicana, uma controlada por eles, não pelos papas, e aos católicos da Espanha não era permitido um apelo ao papa, contra o rei ou contra a Inquisição do rei. Antes, Ferdinando e Isabella haviam sido "vigorosamente Erastianos." [1] Maximiliano I (1459-1519) esperava ganhar o trono papal depois da morte do papa ou pela deposição dele. [2] Todos esses homens confiscaram propriedades e bens da igreja quando lhes aprouve fazê-lo. Estes eram "bons católicos" que fizeram tanto dano à igreja quanto Henrique VIII. Thomas More, um "bom Católico" posteriormente feito santo, aconselhou Henrique VIII a tomar os mesmos passos aos quais ele opôs-se posteriormente.

Um forte argumento poderia ser feito a partir do fato de que a Reforma Protestante salvou a Cristandade e preservou a Igreja Católica Romana. Isso não significa dizer que o desmantelamento da Cristandade não continuou vigorosamente. Os vários governantes estavam convencidos de que a sociedade era mais civil do que teológica em sua fundação. Os advogados das coroas estavam ocupados em todos os lugares estabelecendo novas premissas legais para a sociedade. A Reforma e a Contra-Reforma criaram uma força contrária à revolução civil em andamento.

Mas as fundações estavam mudando. Charles Baudelaire, em seu Salon de 1846, escreveu, 


"O crítico deve armar-se desde o princípio com um critério certo retirado da natureza, e deve então cumprir seu dever com uma paixão; para um crítico não deixar de ser um homem, e a paixão une disposições similares e exalta a razão para as frescas alturas." [3]

Essa é uma afirmação curiosa e importante. Baudelaire está convicto de que o "critério certo" vem, não de Deus, mas da natureza, e a maior habilidade do crítico para ele era que ele era um homem, i.e., natural.

A Renascença estava ansiosa com a tradição, mas não a tradição cristã e sim aquela da antiguidade pagã. [4] Lorenzo Ghiberti deixou transparecer algum ressentimento pelo triunfo do Cristianismo. A arte começou a perder seu panorama e sua referência sobrenatural, e, progredindo na arte renascentista, "não há referência além do que nós vemos."[5]

O "critério certo", tanto na arte quanto na religião ou na política, estava tornando-se firmemente a natureza acima de Deus e de sua Palavra-Lei. O estado, como organização natural do homem, veio à sua posse como um fim em si mesmo. Era cada vez menos "Busque primeiro o Reino de Deus, e sua justiça" (Mt 6:33), mas, firmemente, procure primeiro o reino político como a vida e organização básica do homem. A revolução civil deu um novo foco à vida, o estado. O homem começou a ver a si mesmo mais como um animal político do que como uma criatura de Deus.

No Dictionary of Sociology (1944), Mapheus Smith tem duas interessantes definições de homem que contam-nos muito sobre nosso mundo do século XX. O homem não vê mais a si mesmo clara e nitidamente em termos de Deus como uma criatura feita à Sua Imagem. Antes, a ciência tem ensinado-o a pensar de si mesmo naturalisticamente. De acordo com Smith,


"homem (1) A espécie humana em geral como distinguida dos organismos sub-humanos. Homo Sapiens (2) Um macho adulto membro da espécie humana.
homem, marginal. No sentido geral, uma pessoa que não é um membro totalmente participante de um grupo social. Muitas pessoas marginalizadas são marginais para dois ou mais grupos, como é verdade para imigrantes parcialmente assimilados." [6]

As raízes dessa mudança do homem Cristão para o homem civil estão na adoção do pensamento de Aristóteles pela igreja medieval. Em termos aristotélicos, Tomás de Aquino afirmou que "O homem é um animal social"; "O homem é propriamente aquilo que ele é de acordo com a razão", e


"A natureza deu ao homem o começo da satisfação de seus desejos, dando-o razão e um par de mãos; mas não satisfação completa, como para os outros animais, a quem ela deu comida e vestimenta suficientes." [7]

Há muito mais em Aquino do que isso, mas há muito disso. O que nós podemos dizer da afirmação de Aquino de que "a natureza deu ao homem... razão," etc.? Se a natureza deu ao homem o seu ser, nós podemos ter apenas uma moral e uma ordem social naturalistas, mas se Deus deu ao homem cada átomo de seu ser, e é o Autor de todas as coisas, então nós temos um mandato para uma organização divinamente ordenada pela sua Palavra-Lei. O Breve Catecismo de Westminster, Q. 10, pergunta, "Como criou Deus o homem?" e responde,


"Deus criou o homem macho e fêmea, conforme a sua própria imagem, em conhecimento, retidão e santidade com domínio sobre as criaturas. (Gn 1:26-28; Cl 3:10; Ef 4:24; Hb 11.3; Sl 33.9; Gn 1.31.)"

A entrada das visões gregas do homem e de seu ser na filosofia e na política civil durante a Idade Média conduziu a uma nova forma de pensar a igreja e o estado. O resultado foi a Revolução Civil, um reavivamento do paganismo onde a organização humana agora era o estado acima do Deus Triúno. Com esta Revolução Civil, o centro da sociedade mudou da igreja para o estado, da teologia para a política, e do Reino de Deus para os vários reinos do homem. "Razões do estado" agora começaram a prover uma nova moralidade, porque a moralidade é o relacionamento do homem com a realidade. Se o legislador da sociedade civil é a realidade, então, como Maquiavel e Castiglione viram, nós alinhamo-nos àquele legislador como nosso dever moral e realista. Em tal sociedade, a Lei de Deus torna-se uma moralidade "irrealista". Se, entretanto, o Deus da Escritura é o Deus vivo, então a moralidade civil é falaciosa e o homem e o estado civil estão sob julgamento e reprovação. A Revolução civil é, portanto, para o irrealismo e a morte.

(Artigo extraído de "Sovereignty", de Rushdoony. Págs. 261-264)

1. A.G. Dickens, The Counter-Reformation (New York, NY: Hartcourt Brace and World, 1969), 15-18, 91-92, 149ff.
2. Friefrich Heer, The Holy Roman Empire (New York, NY: Friedrick A. Praeger, 1967), 139.
3. Michael Fried, in "Painting Memories: On the Containment of the Past in Baudelaire and Manet", in Robert von Hallberg, ed., Canons (Chicago, IL.: University of Chicago Press, 1984), 227.
4. Michael Levey, Early Renaissance (Middlesex, England: Penguin Books, [1967] 1987), 15.
5. Ibid., 24, 81.
6. Mapheus Smith, "Man", in Henry Pratt Fairchild, ed., Dictionary of Sociology (New York, NY: Philosophical Library, 1944), 182.
7. Marris Stockhammer, ed. Thomas Aquinas Dictionary (New York, NY: Philosophical Library, 1965), 118-19.

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

sexta-feira, 22 de maio de 2015


NEOPLATONISMO E O HOMEM MODERNO
por R. J. Rushdoony.

O Michael Wigglesworth do século XIX foi Karl Marx. Não é nosso propósito examinar de perto ou mais do que passageiramente a filosofia de Marx. Para Marx, a dialética era entre a natureza e a liberdade (ou espírito). O mundo material da natureza era um mundo perigoso e uma armadilha quando ele domina os homens como faz no capitalismo. A liberdade significa a captura e total controle do mundo material pela mente ou espírito de Hegel, que encarnaria a si mesmo na ditadura do proletariado e libertaria o homem das amarras do trabalho e da alienação. A amarra para Marx era o trabalho, estando atado ao mundo material. Para Marx, a liberdade significa isso, "A diminuição do trabalho diário é sua premissa fundamental." [1] A liberdade, então, era o triunfo do espírito através do controle do mundo material e pela libertação do homem para o mais longe do trabalho quanto possível. Na mesma passagem do livro O Capital, Marx escreveu que "O reino da liberdade não começa até que seja ultrapassado o ponto onde o labor sob a compulsão da necessidade e da unidade externa seja requerido". [2] Frederick Engels usou termos mais explicitamente neoplatônicos quando clamou pela "ascensão do homem do reino da necessidade para o reino da liberdade". Diferentemente do neoplatonismo anterior, em que o reino do espírito individual ascendeu do reino da necessidade, o mundo material, dentro do reino da liberdade, o mundo espiritual, a ascenção Marxista era social. Isidor Schneider, editor literário do New Masses, escreveu uma novela para demonstrar esta tese, e seu herói chegou à seguinte conclusão no fim do livro: 


"Ele escapou do mundo da necessidade; ele encontrou uma saída, um escape de sua classe, apenas pra descobrir que, do lado de fora, ele era um homem sem lar. Ele estava aprendendo que ninguém pode entrar no reino da liberdade sozinho. Ele retornaria à sua classe. Com ela, ele marcharia, tomando sua posição nas linhas avançadas, no irresistível movimento de massas da humanidade do reino da necessidade para o Reino da Liberdade." [3]


Básico para o neoplatonismo de Marx era sua teoria de valor. Para ele, como ele avaliava os produtos, definitivamente não eram as leis de mercado materialistas e sua oferta e demanda que governam o valor. Para Marx, "o valor de cada mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho empreendida e materializada nele; pelo tempo de trabalho necessário, sob determinadas condições sociais, para sua produção." [4] O valor então era retirado do domínio do mercado e determinado, em vez disso, pelo labor, e labor significa algo que estaria "materializado" em um produto. Em outras palavras, o valor era uma consequência de uma ideia tornando-se materializada pelo labor. As leis de mercado não devem governar, porque elas são o mundo grosseiro da realidade material como colocado contra o mundo puro da razão ou da mente. Como North observou,


"Marx requereu um paraíso econômico onde não haveria escassez, nem incerteza, e nenhum empreendedorismo capitalista. É apenas esse tipo de mundo que pode dispensar lucros. Marx queria o paraíso na terra, ou mais precisamente, ele queria um escape do tempo e das maldições que o tempo trouxe consigo. Sua visão de socialismo finalmente requereu um universo estático no qual não existiria nenhum tipo de mudança, ou pelo menos onde todas as mudanças possam ser acuradamente previstas e controladas. Devido ao fato do capitalismo ter falhado para encontrar essa requisição, ele rejeitou-o como a criação de uma humanidade alienada, um período temporário que chegaria ao fim com a Revolução. Ele castigou o capitalismo por ter se desviado da concepção utópica de mundo perfeito." [5]

A observação de North é um excelente sumário das implicações dos objetivos de um neoplatonismo socializado.

Em mais de um sentido, Marx assemelhava-se a Wigglesworth. Nalgum lugar em seu pensamento, Wigglesworth aparentemente caiu em problemas sexuais e talvez tenha contraído gonorreia. Marx seduziu, ou, melhor dizendo, estuprou a serva de sua esposa, uma mulher piedosa e de fé que guiou a imprudente família de Marx com senso comum e dignidade. Um filho nasceu. Como Payne comentou, 


"Para Marx, fora de seus sonhos de revolução e poder, o nascimento de um filho bastardo era uma tragédia completa, uma sombra pousando sobre os anos restantes de sua vida. Sua vida estava devotada à criação de uma lenda revolucionária de proporções heroicas; nessa lenda, o estupro de uma serva não poderia ter lugar. Ele portanto repudiou a criança, negou tanto quanto foi possível ter qualquer coisa a ver com isso, e não fez nenhuma tentativa de apoiar isso. Muitos anos depois ele encontrou seu filho, mas foi um encontro muito breve. O filho não sabia que estava vendo seu pai." [6]

Wigglesworth desprezou a carne, mas encontrou no sexo uma tentação contínua. Marx desprezou o materialismo capitalista, mas ele estava continuamente buscando bem-estar. Durante boa parte de sua vida, Marx teve uma renda alta sob seu controle, mas ele gastou muito dela em tolas especulações na bolsa de valores, tentando enriquecer facilmente. [7]

Ironicamente, Marx, como outros neoplatônicos dos últimos séculos, era atormentado por doenças físicas. Payne conta-nos que o corpo de Marx esteve por vinte anos de sua vida coberto com tumores ferventes e gangrenosos, "exalando o fedor que afastava as pessoas". [8] "Havia períodos de quintessência, e outros períodos quando seu corpo inteiro parecia quebrar-se em úlceras. como Job, ele protestou veementemente, acusando os fatos de reservarem uma maldição especial somente pra ele." O mundo material rejeitado estava cobrando seu preço pela rejeição de Marx.

A esperança neoplatônica foi feita um objetivo social de Marx, e os artistas rapidamente compartilharam-na. Um dos resultados foi um ódio característico do mundo da realidade material, e "um protesto contra a feiura do industrialismo." [10]

A arte, quando Cristã, enfatizou a Graça, não a natureza (realismo). A arte humanista do Renascimento, neoplatônica até as entranhas, começou enfatizando a natureza (realismo) e moveu-se até uma aderência escrava da ideia de natureza do neoclassicismo. A arte moderna rejeitou a graça, bem como a natureza, para afirmar o espírito neoplatônico, especialmente no anarquismo, no sentido individualista. O objetivo da arte moderna é expressar o mundo interno do espírito. 

A arte requer justificativa, como fazem todas as atividades humanas. Tendo perdido a justificativa cristã, a arte agarrou uma justificativa humanista. Desde então tem havido uma implacável busca por significado e justificativa, sempre infrutífera. O vazio foi preenchido pela prioridade dada, em uma era recente, à técnica, e agora à inovação. A ênfase clássica em linhas, em forma e estrutura, a adição Romântica de novos assuntos, motivos pastoris, animais humanizados, e assim por diante, estas coisas eram a principal linha de desenvolvimento na arte, e cada desenvolvimento revelou-se vazio por seus imitadores, e então abandonados por todos.

O ódio da classe média, as pessoas "materialistas" da sociedade, tornou-se a marca do Boêmio e do artista, além dos intelectuais. Mesmo Tockeville compartilhou esse sentimento, afirmando que uma ordem moralizada só poderia vir da aristocracia ou das classes baixas.[11] Como Cesar Grana pontua, para os escritores e pensadores do dia, "valores significativos eram por definição valores não-utilitários."[12] O mundo dos valores era visto por eles como o mundo da mente ou espírito e definitivamente não é associado com o mundo material e sua representante, a classe média.

Porque o mundo material e sua classe média foram rejeitados, a moralidade "materialista" da religião bíblica também teve de ser rejeitada, e essa foi uma necessidade intelectual para ser um Boêmio ou um marginal. Um jovem aspirante literário do século XIX na França comentou: "Eu daria todos os meus talentos para ser um degenerado. Que linda peça eu escreveria." [13]

No século XX, esse conceito de degenerado recebeu pleno desenvolvimento pelas mãos de Jean-Paul Sartre. O completo desenvolvimento para o homem foi interpretado como significando uma quebra radical com a moralidade burguesa e materialista. Os valores para Sartre são existenciais: eles vêm diretamente do espírito imaculado do homem, não-influenciado pela religião e pelo passado e desgovernado pelo mundo material da história. É o espírito do homem quando produz livremente a ideia que é valor e moralidade; então tudo o que o homem faz é um valor. O falso mundo burguês de valores materiais precisa ser destruído. Como Molnar pontuou,


"Visto superficialmente, o anti-burguês pertence à classe dos modernos heróis da literatura, moralmente livres e não-conformistas em atitudes... Mas o tema do herói moderno deve ser precisamente transformado antes que torne-se útil no mundo de Sartre; aqui o mundo burguês não é apenas deixado pra trás, ele torna-se o anti-mundo cuja substância e estrutura não pode apenas ser ignorada, mas precisa ser destruída na ordem de alcançar a total libertação metafísica." [14]

Essa alienação do mundo material é a postura moderna. Estar interessado em comércio e coisas materiais é evidência de anti-intelectualismo para os neoplatônicos. A "Natureza" como uma abstração é honrada, mas a natureza está divorciada da realidade material, do mundo da dura necessidade material, em favor da natureza como uma expressão do espírito.

Entre os beatniks e então os hippies, esse desprezo do materialismo e da carne tomou a forma clássica da negligência para com a vestimenta, cabelos despenteados, e corpos sujos, e uma sexualidade que tratou o sexo com desprezo. O sexo para muitos estava divorciado da moralidade, exceto a moralidade existencialista do espírito livre dando valor ao momento. O sexo significava "amor" nesse sentido fugaz e existencialista, não no sentido difícil, sentido material de trabalho e suporte, um dono de casa e seu trabalho, fidelidade, uma atenção às necessidades físicas, ou coisas desse tipo. Essas coisas eram vistas como estrangulações materialistas do espírito, do amor. A separação neoplatônica de corpo e espírito estava muito longe.

Na medicina, a falha em não reconhecer a natureza bíblica da mente e do corpo conduziu a uma crise. De acordo com Pedro Entralgo, um professor de história da medicina, a medicina Ocidental, a despeito do progresso científico, está em um grave e contínua impasse" porque ela "tem sido habilidosa pra considerar o mal humano apenas do ponto de vista do lado 'físico' do ser humano, se é que ela não alcançou o extremo da identificação da 'natureza' ou physis com 'corpo'. A tentativa de escapar dessa perspectiva - Paracelsus, Van Helmont, a medicina do Romantismo - foram tão inefetivas quanto extraviadas." [15]

O homem nunca deixou de ser material pelo desprezo ao corpo; isso comumente tem agravado seu materialismo porque tem negado uma expressão normal, como em Wigglesworth. Similarmente, o homem nunca deixou de ser espiritual quando ele negou o espírito; em vez disso, ele tem caído vítima de uma tirania falsa e fanática do espírito, como em Marx.

O neoplatonismo conduz a um desprezo pelo tempo e pela história. Cornelius Van Til chamou atenção para o paralelo entre o desenvolvimento desde Aristóteles e Plotino e desde Descartes a Kant. Tais filosofias devem negar a fé bíblica tanto quanto possível, e em particular a encarnação, porque "Nada único pode ser identificado com qualquer coisa histórica." O mundo histórico, o mundo de matéria, não pode ser o mundo da encarnação em qualquer sentido bíblico. Tanto nas filosofias antigas quanto nas modernas, isso é igualmente verdadeiro:


"No caso de cada uma dessas, o suposto homem autônomo primeiro assume que pelos poderes de sua lógica ele pode determinar o que pode ou não pode existir. No verdadeiro estilo de Parmênides, ele determina que não pode haver tal coisa como uma experiência realmente significativa. Não pode haver criação fora de nada. Não pode haver encarnação do Filho de Deus. Se ele é o Filho de Deus, então ele é um princípio eterno imutável.Se o filho de Deus torna-se igual a um homem com Jesus, então ele acidentalmente caiu de seu estado de divindade e precisa ser ele mesmo salvo pela absorção em si mesmo como um princípio eterno. 


Quando, portanto, os gnósticos amigavelmente procuravam relações com o Cristianismo e chamaram-se a si mesmos de Cristãos, isso era, em última instância, quer eles conhecessem completamente a si mesmos ou não, um esforço do homem natural de absorver o Reino de Deus dentro do reino de Satã."[16]

Onde quer que exista qualquer elemento neoplatônico, a Bíblia é desentendida e mal interpretada. O homem está amputado em sua capacidade de reconhecer a natureza da realidade e está cego às questões morais básicas de sua existência.

No pensamento não-cristão, o Neoplatonismo desumaniza a vida porque ele nega a individualidade em favor dos universais; e ele procura pôr fim à história e instituir uma ordem não-temporal, ou, desesperado com isso, ele nega os universais em favor dos particulares e exalta o momento como a única realidade.

O Neoplatonismo, pela sua falsa interpretação da natureza e da psicologia do homem, também tem trabalhado para desumanizar o homem. Nas ordens Marxistas, o objetivo é encarnar a razão científica na ordem política e despi-la de considerações materiais e passionais. Os líderes soviéticos, tais como Stalin e Molotov, adotaram esses novos nomes para indicar sua transcendência de sua antiga natureza: eles eram agora aço e martelo no serviço da pura razão da vontade geral da história.

A estudada ausência de raízes da educação moderna depois de Locke, a mente como uma tábua em branco, um conceito que é subliminar nas psicologias modernas, incluindo o Comportamentalismo (Behaviorism), é um desenvolvimento neoplatônico. O quadro-negro limpo da mente pode supostamente ser desenvolvido dentro de uma impassível, racional e científica mente que funciona como pura razão. O resultado líquido da fantasia neoplatônica é que ela produziu, com sua dialética, o moderno diabolismo. Na tentativa de transcender a humanidade, o homem neoplatônico precisou declarar guerra contra a humanidade. Nietzsche afirmou que o Cristianismo era uma fé que negava a vida, apenas para ele mesmo produzir a fé que mais negava a vida na história do Ocidente. O homem deveria ser destruído para abrir caminho para o Super-homem, uma ficção impassível e um monstro que negava a vida. Em "A Genealogia da Moral", Nietzsche afirmou que o ideal ascético era o "ódio do que é humano, e mais ainda do que é animal, e mais ainda do que é material." Com grande clareza, ele viu a questão, e, com palavras marcantes, resumiu o objetivo mortal do ideal ascético. Em vez de um desejo pela vida, isso era claramente um desejo pela morte, ou para o Nada:


"... este horror dos sentidos, da razão em si mesma, esse medo da felicidade e da beleza, este desejo de sair de toda ilusão, mudança, crescimento, morte, esperança e mesmo desejo - tudo isso significa - a vontade pelo Nada, uma vontade oposta à vida, um repúdio das condições mais fundamentais de vida, isso ainda é e continua sendo uma vontade! - e dizer no fim o que eu disse no começo - o homem desejará o Nada no lugar de não desejar coisa alguma." [17]

Mas o próprio Nietzsche veio a desejar a morte e o Nada como um bom neoplatônico. Ele negou o homem, e ele negou Deus, em favor do mito da razão, o Super-homem. Negando Deus, ele negou a igualdade nivelada dos homens diante de Deus, porque os homens estão diante de Deus, não em termos de suas obras, mas da graça e trabalho de Deus. Porque Nietzsche afirmou que Deus estava morto, a igualdade entre os homens estava falida. "Foi assim que Deus morreu: agora nós desejamos - que o Super-homem viva."[18] O homem deve ser superado. O sentimento de Nietzsche a respeito do "populacho - um amontoado: - aquilo desejou ser o senhor de todo o destino humano - Ó, nojo! Nojo! Nojo!" [19] Nietzsche derramou seu desprezo e ódio do homem em nome do Super-homem, uma ficção de sua imaginação neoplatônica. Ele cita ainda o "último pecado" ou tentação de Zarathustra, o campeão do Super-homem. É o "companheiro de sofrimento". Ele rejeita essa tentação: 


" 'Companheiro de sofrimento! Companheiro de sofrimento com o homem superior!' ele chorou, e seu semblante mudou desavergonhadamente "Bem! Aquilo - teve seu tempo! 


'Meu sofrimento e meu companheiro de sofrimento - o que importa sobre eles?! Então eu me esforço pela felicidade? Eu me esforço pelo meu trabalho!...'"[20]

Nietzsche terminou com "um repúdio das condições de vida mais fundamentais." Ele terminou com um repúdio do homem e de qualquer paixão pelo homem. O homem pra ele, como para todos os neoplatônicos, era o homem abstrato de suas imaginações, quer seja chamado de homem ou Super-homem. Em todo caso, o neoplatonismo está em guerra contra a realidade. Ele sonha em brincar de deus e recriar o homem, mas em seu sonho, o homem torna-se o monstro Frankenstein, uma impossibilidade em cujo nome o homem real deve ser sacrificado. Em sua forma mais moderada, ele ainda despersonaliza o homem, como testemunha Thomas More permitindo que suas filhas fossem examinadas nuas como gado por um pretendente antes que o homem fizesse sua escolha entre uma delas. Nisso, More foi fiel ao modelo que ele defendeu em sua Utopia.

Essa guerra contra a humanidade torna-se muito audível na vida, pensamento e ação do século XX. O objetivo da sexualidade de Henry Miller é em grande medida anti-sexual. Por sua própria decisão, o objetivo é ser "inumano", e o homem deve "arrancar suas entranhas" e tornar-se impassível:


"Lado a lado com a raça humana corre uma outra raça de seres, os inumanos, a raça de artistas que, resolutos por impulsos desconhecidos, tomam a masse sem vida da humanidade e pela febre e pelo fermento com que eles imbuem-os, transformam essa massa encharcada em pão e pão em vinho e o vinho em canção. Fora do amontoado de mortos e da covardia inerte, eles respiram uma música contagiante. Eu vejo esta outra raça de indivíduos despojando o universo, colocando tudo de baixo pra cima, seus pés sempre movendo-se em sangue e lágrimas, suas mãos sempre vazias, sempre agarrando avidamente por algo além, pelo deus fora de alcance: assassinando tudo o que podem no intuito de aquietar o monstro que atormenta suas partes vitais. Eu vejo que quando eles despenteiam seus cabelos o esforço para compreender, de capturar o irrealizável, eu vejo que quando eles berram como bestas enlouquecidas e rasgam e chifram, eu vejo que isso é certo, que não existe nenhum outro caminho a trilhar. Um homem que pertence a essa raça deve erguer-se no mais alto lugar com palavras incompreensíveis em suas bocas e rasgar suas próprias entranhas. Isso é certo e justo, porque nós precisamos! E tudo que cai rapidamente nesse espetáculo assustador, qualquer coisa menos estremecida, menos aterrorizante, menos louca, menos intoxicada, menos contagiante, não é arte. O resto é falsificação. O resto é humano. O resto pertence à vida e à ausência de vida.


Quando eu penso em Stavrogin, por exemplo, eu penso em algum monstro divino ocupando um alto lugar e arremessando suas entranhas rasgadas em nós. Em The Possessed, a terra treme: isso não é a catástrofe que sucede ao indivíduo imaginário, mas um cataclismo em que uma grande parte da humanidade é enterrada, exterminada pra sempre." [21]

Esse Super-homem neoplatônico deve mover-se sempre através de "sangue e lágrimas", atropelando a humanidade sob seus pés. Ele é um fracasso, diz Miller, se ele não é assassino e "contagiante"; ele é então "falsificação" e "humano", ele "pertence à vida e à ausência de vida", ao mundo passional do nascimento e morte em vez do mundo de pura razão, puro espírito, Geist, ou mente, pra usar os termos de Hegel. O objetivo é que "uma grande parte da humanidade" seja "enterrada, exterminada pra sempre."

Qualquer avaliação séria do século XX e suas guerras, seus campos de trabalhos forçados e campos de concentração, suas universidades e escolas, devem concluir que essa guerra está em progresso. Ela não cessará a menos que a filosofia que a fortalece seja desenraizada e o homem seja novamente colocado em seu lugar sob Deus e Sua soberana Palavra. Nas palavras de Van Til,


"O auto-testemunhado Cristo ainda alcançará vitória. Mas ele ganhará quando teólogos, filósofos e cientistas, e todos os que têm responsabilidade cultural, reassumirem o mandato dado a Adão de sujeitar a terra para o louvor de seu Criador e Redentor." [22]

O neoplatônico tem um ódio amargo da vida, porque ele nem é seu autor nem pode controlá-la; portanto, ele procura destruí-la, e poucos são honestos como Miller para expressar sua vocação para destruir e matar. Como a Sabedoria declarou há muito tempo, "Mas o que pecar contra mim violentará a sua própria alma; todos os que me odeiam amam a morte." (Pr 8:36)

Enquanto alguns neoplatônicos trabalham para a morte do homem, outros proclamam-no uma ilusão. Dewey, na forma moderna, viu a psicologia humana como ilusória, como desprovida de importância; Mark Baker Eddy viu apenas a mente universal como realmente existente. Tanto o indivíduo quanto a matéria, como são para a Ciência Cristã, uma ilusão. De qualquer forma, salvação para esses e outros é sempre uma questão individual, e a Palavra de Deus não dá nenhuma evidência de um decreto tão geral e total. Os neoplatônicos que odeiam a vida estão então fadados ao desapontamento; eles podem encontrar algum consolo em seus pequenos e privados cantos do inferno.

(Artigo extraído de "Flight from Humanity", de Rushdoony. Págs. 61-70)

1. Karl Marx, Capital (Chicago: Charles H. Kerr & Co., 1909), III, 955.
2. Ibid., 954.
3. Isidor Schneider, From the Kingdom of Necessity (New York: G. P. Putnam's Sons, 1935), 450.
4. Karl Marx, Capital, Encyclopedia Britannica, edition, pt. III, 2, 89-90.
5. Gary North, Marx's Religion of Revolution (Nutley, N. I.: the Craig Press, 1968), 170.
6. Robert Payne, Marx (New York: Simon and Schuster, 1968), 266.
7. Ibid., 353-54.
8. Ibid., 342.
9. Ibid., 343.
10. R. H. Wilenski, The Modernist Movement in Art (New York: Thomas Yoseloff, 1957), 95.
11. Cesar Grana, Bohemian Versus Bourgeois (New York: Basic Books, 1964), 104.
12. Ibid.
13. Ibid., 145.
14. Thomas Molnar, Sartre: Ideologue of Our Time (New York: Funk and Wagnalls, 1968), 10-11.
15. Pedro L. Entralgo, Mind and Body (New York: P. J. Kenedy and Sons, n.d.), 112.
16. Cornelius Van Til, Christianity in Conflict (Philadelphia: Westminster Theological Seminary Syllabus, 1962), pt. I, 47-48.
17. Friedrich Nietzche, "The Genealogy of Morals", in The Philosophy of Nietzsche (New York: Modern Library, n.d.), 178.
18. Nietzsche, "Thus Spake Zarathustra" in ibid., 286.
19. Ibid., 287.
20. Ibid., 325.
21. Henry Miller, Tropic of Cancer (New York: Grove Press, 1961), 254-55.
22. Van Til, op. cit., 169.

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

segunda-feira, 18 de maio de 2015



CRIACIONISMO E PSICOLOGIA 
por R. J. Rushdoony.

A psicologia humanista nos dá uma doutrina do homem em desacordo radical com as Escrituras. Para os clérigos, tornou-se rotina olhar para psicologias humanistas como guias para o aconselhamento pastoral, e livros aplicando essas psicologias para os problemas pastorais têm tido um mercado receptivo e uma ampla influência. O resultado tem sido a constante infiltração nociva do humanismo em círculos cristãos e a erosão paulatina das doutrinas bíblicas do homem e da salvação.

Ao analisarmos a doutrina bíblica do homem e da psicologia do homem, é necessário, em primeiro lugar, reconhecer que do homem é declarado ser uma criatura, criado pelo ato soberano de Deus no sexto dia da criação (Gênesis 1: 26-31 ). Este fato nos dá um quadro radicalmente diferente do homem do que o fornecido pela evolução. Ao invés de emergir do caos e de uma ancestralidade animal, o homem é o trabalho direto e imediato de Deus.

Isto significa, em segundo lugar, que o homem tem uma história curta, não um passado longo e desconhecido. Essa história curta é muito amplamente documentada pela Escritura, bem como pelos registros do próprio homem. O homem é, portanto, sujeito à explicação por um registro documentado, não um passado longo e hipotético. Este registro documentado faz toda desculpa e evasão menos sustentável, enquanto um passado desconhecido corrói a responsabilidade e introduz confusão e incerteza. Assim, para o cristão, a psicologia do homem é um registro documentado.

Em terceiro lugar, em virtude do fato da criação seguir um padrão, o eterno propósito e conselho de Deus, (e à sua imagem), a psicologia do homem não é um fato em evolução, mas uma realidade fixa. O homem é mais do que um ser existente que está em processo de elaboração e definição de si mesmo; ele já foi feito e definido por Deus. Assim, a psicologia do homem posta por Freud, [1] ou por Sartre, [2] e outros, é falaciosa. A natureza do homem não é fixada por um passado evolutivo, nem por uma questão em aberto a ser determinada pelo homem. É um fato dado por Deus.

Em quarto lugar, o homem foi criado um ser maduro, não uma criança. Este é um fato de importância central. Nós, portanto, não podemos fazer psicologia infantil como base para a compreensão do homem. De acordo com Jastrow,


"O que podemos aceitar é o princípio de que a criança é uma autêntica encarnação da mais antiga, racialmente mais velha, mais persistente, mais autêntica natureza, guardiã da psicologia comportamentalista (behaviorista) natural." [3]

A psicologia humanista olha para trás, para um passado primitivo, a fim de explicar o homem, ao passo que a psicologia bíblica não olha nem para a criança nem para um passado primitivo para explicar o homem, mas para uma criatura madura, Adão, e para o propósito de Deus na criação do homem. Se o homem em sua origem é um produto de um passado evolutivo longo, o homem é, então, melhor compreendido em termos do animal, o selvagem e a criança. No entanto, desde que o homem era em sua origem uma criação madura, sua psicologia é melhor compreendida em termos de fato. Os pecados e falhas do homem não representam um primitivismo persistente ou uma reversão para a infância, mas uma deliberada revolta contra a maturidade e contra os requisitos da maturidade. Atribuir ao homem, como psicologias humanistas fazem, um substrato básico de primitivismo e infantilidade racial, é dar a essa revolta contra a maturidade uma justificativa ideológica; a estudada e desenvolvida imaturidade do homem é incentivada e justificada de forma madura. Se o homem é lembrado, sim, de que foi criado em Adão para a maturidade e responsabilidade e que sua revolta é contra a maturidade e responsabilidade, sua auto-justificação é quebrada. Tornou-se comum para as pessoas procurarem aconselhamento para discutir, não o seu problema, mas sua infância, seus pais e seu ambiente, a fim de "explicar" a sua presente "situação", isto é, o seu fracasso. O fato de uma criação madura é um dos fatos básicos e mais importantes de uma psicologia bíblica. É um fato de importância incalculável.

Em quinto lugar, o homem foi criado um ser maduro nos termos do propósito soberano de Deus, de modo que o sentido da vida do homem transcende o homem. O homem nunca pode ser entendido em termos de si mesmo, mas apenas por referência ao propósito soberano de Deus. A psicologia humanista sempre nega essa transcendência e, portanto, nega ao homem o sentido da sua existência. O Existencialismo é mais honesto aqui do que a maioria das filosofias e psicologias humanistas; mas ele nem define o homem nem atribui um significado à vida e do homem: "O homem é." Para o Existencialismo, se o homem é qualquer coisa, é porque o homem molda e define a si mesmo. Esta auto-definição é essencialmente um processo anarquista, em que cada homem é seu próprio universo e o deus daquele universo privado. Segundo as Escrituras, entretanto, o homem foi criado, e todo homem nasce dentro de um já definido universo feito por Deus, e cada um tem uma responsabilidade específica para com o Deus Triúno e aos homens e ao universo feito por Deus. Não apenas a existência do homem é um fato criado e definido, mas as condições de sua vida também são. Em nenhum ponto de sua vida ou a imaginação pode o homem pular fora de ordem ordenada de Deus para um reino de liberdade humanista ou liberdade feita pelo homem. A liberdade do homem é em si uma condição da Criação de Deus. Cada fio de cabelo na cabeça do homem, toda a imaginação de seu coração, e cada fibra de sua vida e experiência, é um aspecto da Criação de Deus e de Seu propósito soberano.

Em sexto lugar, o homem foi criado à Imagem de Deus. Como Van Til apontou,


"Ele é portanto como Deus em tudo em que uma criatura pode ser como Deus. Ele é como Deus no fato de que ele também é uma personalidade. Isto é o que queremos dizer quando falamos da Imagem de Deus no sentido mais geral e mais amplo. Em seguida, quando queremos enfatizar o fato de que o homem se assemelha a Deus especialmente no esplendor de seus atributos morais, dizemos que quando o hoemem tinha conhecimento verdadeiro quando foi criado, verdadeira justiça e verdadeira santidade. Esta  doutrina é baseada no fato de que nos é dito no Novo Testamento que Cristo veio para nos restaurar ao verdadeiro conhecimento, justiça e santidade (Colossenses 3: 10; Ef. 4: 24). Chamamos isso de Imagem de Deus no sentido mais restrito. Estes dois sentidos não podem ser completamente separados um do outro. Seria realmente impossível pensar que o homem foi criado apenas com a Imagem de Deus no sentido mais amplo; cada ato do homem primeiramente tem que ser um ato moral, um ato de escolha contra ou a favor de Deus. Portanto, o homem, em cada ato de conhecimento, deveria mesmo manifestar verdadeira justiça e santidade verdadeira.

Então, depois de enfatizar que o homem era como Deus e na natureza do caso, tinha que ser como Deus, devemos salientar o ponto de que o homem deve ser sempre diferente de Deus. O homem foi criado à Imagem de Deus. Nós vimos que alguns dos atributos de Deus são incomunicáveis. O homem nunca pode em qualquer sentido superar sua condição de criatura. Isso coloca uma conotação definida na expressão de que o homem é como Deus. Ele é como Deus, com certeza, mas sempre em uma escala de criatura. Ele nunca pode ser como Deus em asseidade, imutabilidade, infinitude e  unidade. Por essa razão, a Igreja tem encravada no coração de suas confissões a doutrina da incompreensibilidade de Deus. O Ser e o conhecimento de Deus são absolutamente abrangentes; tal conhecimento é maravilhoso demais para o homem; ele não pode alcançá-lo. O homem não foi criado com conhecimento abrangente. O homem era finito e sua finitude não era originalmente fardo algum para ele. Nem poderia o homem jamais esperar atingir um conhecimento abrangente no futuro. Não podemos esperar ter um conhecimento abrangente, mesmo no céu. É verdade que muito que agora é mistério para nós nos será revelado, mas na natureza do caso, Deus não pode revelar-nos aquilo que como criaturas nós não podemos compreender; teríamos de ser nós mesmos Deus, a fim de entender Deus na profundidade do seu ser." [4]

O homem foi criado bom, porque ele foi criado à Imagem de Deus. Portanto, justiça, santidade, conhecimento e domínio são normativos para o homem. Pecado não é natural, é uma deformação da natureza do homem, um câncer e uma doença até a morte. "Assim, nós sustentamos que o homem apareceu originalmente com uma consciência moral perfeita." [5] O homem, criado à imagem de Deus, "teve que viver por revelação." Desde que o homem é criatura de Deus, todas as condições de vida do homem e cada fibra do seu ser deve responder à Palavra lei de Deus para a sua saúde.


"Essa é, então, a diferença básica e fundamental entre epistemologia cristã e não-cristã, na medida em que tem uma influência direta sobre questões de ética, que, no caso da atividade moral do homem de pensamento não-cristão é considerada como criativamente construtiva, enquanto no caso do pensamento cristão a atividade moral do homem é considerada como sendo receptivamente reconstrutiva. De acordo com o pensamento não-cristão, não há personalidade moral absoluta a quem o homem seja responsável e de quem ele tenha recebido sua concepção do bem, enquanto de acordo com o pensamento cristão, Deus é a personalidade moral infinita que revela ao homem a verdadeira natureza da moralidade." [6]

Em sétimo lugar, tendo Deus criado o homem à Sua Imagem, ordenou-lhe que exercesse domínio e subjugasse a terra. Este é o chamado básico do homem e um aspecto básico de sua natureza. Assim, não só a natureza do homem é criada por Deus, mas a vocação do homem para o domínio está escrita na natureza do homem. Inevitavelmente, o homem é aquela criatura que foi criada para exercer domínio sobre a terra e sujeitá-la, para criar ferramentas e instituições cujo propósito é capacitar o homem para trazer todas as coisas ao seu desenvolvimento apropriado no Reino de Deus. O homem foi criado maduro para que ele pudesse exercer domínio com sua primeira respiração, e a vocação para o domínio é uma parte do seu sangue vital. "Fazes com que ele tenha domínio sobre as obras das tuas mãos; tudo puseste debaixo de seus pés" (Sl 8:6). Este fato do domínio condiciona a vida do homem, sua obediência, bem como sua desobediência. Não pode haver compreensão da psicologia do homem fora de uma consciência dessa inescapável vocação ao domínio, o que, no homem pecador, torna-se uma forma de guerra contra Deus. Nenhuma psicologia pode começar a compreender o homem fora deste aspecto da natureza do homem, o chamado para o domínio. O fato é, porém, que as psicologias humanistas negam a criação do homem em maturidade e deixam de reconhecer o significado da sua vocação para o domínio. Como resultado, eles não só não conseguem entender o homem, mas eles também dão uma falsa ilustração do próprio homem.

Em oitavo lugar, somos informados de que "homem e mulher os criou" (Gn 1:27). O caráter sexual de homens e mulheres não é um produto cego e acidental da evolução, mas o propósito de Deus e base para qualquer entendimento do homem. As tentativas de negar a validade dos regulamentos sexuais bíblicos, para interpretar a homossexualidade como uma expressão de um desenvolvimento primitivo ou como outra forma de livre expressão sexual do homem, ou para negar as diferenças psicológicas entre um homem e uma mulher, são, portanto, moralmente, bem como psicologicamente erradas. Os fatos da masculinidade e da feminilidade são básicos e constitutivos do propósito de Deus para a humanidade, e qualquer psicologia que nega-os é assim estéril e carente de entendimento. Ironicamente, os humanistas, que condenam os padrões bíblicos como puritanos e repressores, são eles próprios culpados dos piores repressões em sua negação das diferenças sexuais e de sua validade psicológica. O igualitarismo de psicologias humanistas provoca uma castração básica da natureza sexual do homem e da mulher e é uma grande força repressora na sociedade moderna.

Em nono lugar, básico para a psicologia do homem é o mandato da Criação, "Sede fecundos, multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a" (Gn 1:28). Este mandamento é precedido, no mesmo versículo pela declaração: "E Deus os abençoou." O mandamento em si é uma bênção, e o ato de obediência a todos os mandamentos de Deus é, em si, uma fonte de bênção.

Básico para a natureza do homem criado por Deus, originalmente totalmente bom, é o desejo de ser fecundo e multiplicar. A psicologia do homem como criado por Deus é, portanto, regulada pelo presente motivo, e, ainda que pervertido, este motivo não pode ser destruído sem destruir o homem. A hostilidade a esta fertilidade marcará assim uma era suicida.

O mandamento deixa claro que esta fertilidade é um aspecto do domínio do homem: "Enchei a terra e sujeitai-a." Das crianças, o Salmo 127: 3 diz que elas "são herança do Senhor." Uma herança significa duas coisas: Qualquer coisa recebida dos pais ou predecessores, e também o estado ou condição em que nascemos. Como uma "herança do Senhor" as crianças são, portanto, a nossa herança de Deus, bem como uma condição feliz da vida na Aliança. "Bem-aventurado é o homem que enche deles a sua aljava; não serão confundidos, quando falarem com os seus inimigos à porta" (Sl 127: 5). Não só a Escritura, mas a experiência da história deixa claro que a fertilidade tem sido vista como um aspecto de domínio e como um aspecto da glória do homem.

Em décimo lugar, é duas vezes indicado no relato da Criação (Gn 1: 26, 28) que um aspecto do domínio do homem é sobre o mundo animal, "sobre toda coisa vivente." O homem foi criado, assim, com um relacionamento com os animais estabelecido como normativo para sua psicologia saudável. A relação do homem para com os animais não é, portanto, de guerra, mas de domínio. O fato de que homens pecadores têm tratado animais meramente como um obstáculo a ser destruído não conseguiu apagar eficazmente a vocação do homem para um domínio normativo sobre eles. Os homens têm domesticado e aproveitado animais, utilizados como animais de estimação, protetores, e servos, e eles têm muitas vezes reconhecido que os animais selvagens têm uma função dada por Deus para trazer a terra sob o domínio.

Em décimo primeiro lugar, o homem foi criado para viver em um mundo perfeito e para cultivá-lo e mantê-lo (Gn 2:15). Assim, a psicologia do homem tem como básica uma relação com a própria terra, que é reforçada pelo fato de que o homem foi formado a partir do "pó da terra" (Gênesis 2:7) e depois feito alma vivente. O homem é portanto ligado à terra, física e psicologicamente. A terra é a área do seu domínio, o lugar para que sua fertilidade seja manifestada, e seu tesouro para desenvolver a ordem que Deus exige dele.

Estes são alguns dos aspectos elementais e elementares da psicologia do homem. O homem foi criado na maturidade, e seu pecado é uma tentativa resoluta e fútil de fugir da maturidade. No entanto, enquanto o homem pode falhar em cumprir suas responsabilidades, ele nunca pode escapar delas.

(Artigo extraído de "Revolt Against Maturity", de Rushdoony. Págs. 5-12)

1. Ver RJ Rushdoony: Freud. Philadelphia: Presbyterian & Reformed Publ. Co., 1965. [Publicado no Brasil pela Editora Monergismo]
2. Jean-Paul Sartre: Being and Nothingness. New York: Philosophical Library, 1956.
3. Joseph Jastrow, "The Reconstruction of Psychology," in The Psychological Review, #3, 1927, p. 169, cited in Cornelius Van Til: Psychology in Religion, p. 58. Philadelphia: Westminster Theological Seminary, 1935.
4. Cornelius Van Til: The Defense of the Faith, p. 29f. Philadelphia: Presbyterian and Reformed Publishing Co., 1955.
5. Ibid., p. 70.
6. Idem.

Rev. R. J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo influente, especialista na relação entre Igreja e Estado, e autor de numerosos trabalhos relacionados à aplicação da Lei Bíblica na sociedade.


Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.

Soli Deo Gloria.

domingo, 17 de maio de 2015



O SONHO DE JUSTIÇA TOTAL
por R. J. Rushdoony.

Uma das mais perigosas ideias que dominaram a cabeça dos homens é o sonho de justiça total. Esse é um sonho humanista. O humanista tem um único mundo, esta vida presente, e ele está determinado a fazer da Terra um paraíso. O resultado é consistentemente o inferno na Terra.

A ameaça do sonho de justiça total é que ele requer pessoas perfeitas e um estado e uma ordem social perfeitos para estabelecer-se. O fato é que o homem é um pecador, e ele ainda está indisposto à mudança, satisfeito consigo mesmo, embora descontente com o mundo, e, em virtude de sua natureza caída, um escravo do pecado e portanto escravo para qualquer planejamento (Jo 8:31-36). Como resultado, todo aquele que sonha com um mundo de perfeita justiça, uma habitação de super-homens, e um reino triunfante para o dogma humanista de justiça, deve começar eliminando os homens como eles são para abrir espaço para os homens como eles deveriam ser. A Revolução Francesa planejou a redução da população da França para uma fração maleável do que era; Nietzsche pediu pela morte do homem para preparar o mundo para o super-homem; a Revolução Russa e suas revoluções exportadas significaram a morte planejada de todos aqueles representantes da antiga ordem. No Camboja, desde 1975, metade da nação foi assassinada para eliminar todos aqueles que não poderiam ser reformulados nos termos do sonho Marxista de uma ordem perfeita. Os líderes cambojanos do Khmer Vermelho assassinaram todos aqueles que trabalharam pela antiga ordem, todos os cristãos, todos que eram eruditos, todos que viviam uma vida urbana, todos que haviam estado no exterior, e todos que tivessem trabalhado para estrangeiros.

Jamais houve força mais assassina desencadeada contra o homem do que a produzida pelo sonho de justiça humanista. A tirania e o mal governaram a maior parte da história, mas nunca mais rigidamente e meticulosamente quanto por aqueles que trouxeram um controle totalitário em nome da justiça total. Em 1931, "The Imponent General", de Charles Pettit, um breve e iluminado romance, foi traduzido para o inglês. Quando o velho senhor da guerra é substituído por um ideólogo, os camponeses estão infelizes. Um camponês perguntou se isso devia-se à afeição. "De maneira nenhuma ... Tan Pan-tze era um ladrão infame, que vergonhosamente assediou o campo, ferindo pessoas inofensivas e estuprando mulheres de todas as idades e condições..." "Então por que você parece lamentar sua saída?" ... O camponês replicou: "Simplesmente porque seu sucessor, General Pou, é muito pior do que ele era... ele extorque seus tributos metodicamente, de tal forma que é ainda mais difícil de suportar... e, além disso, ele agora exige a pena de morte para não-pagadores e ele faz isso de uma maneira legalizada que multiplicou as execuções" (p. 171).

Não é surpresa que, na jornada por justiça total, os regimes humanistas tenham instituído terror total. As pessoas são açoitadas regularmente, "para seu próprio bem". Elas são impiedosamente sujeitas a repressões selvagens e transformações forçadas, todas planejadas para fazê-las adaptarem-se ao novo modelo de homem para o novo modelo de sociedade.

Tudo isso é lógico. Um mundo melhor requer homens melhores! A questão é: como conseguir homens melhores, como produzi-los? Em última análise, duas escolhas aparecem diante dos homens como os instrumentos pelos quais os homens podem ser transformados: Revolução ou Regeneração.

Se o homem nega a possibilidade de Regeneração, então sua única opção lógica é a Revolução. Desde 1660, com o nascimento do Iluminismo, a lógica do humanismo moveu o mundo firmemente e mais profundamente rumo à Revolução. Todo continente está agora nas garras de uma "fé" [humanista] que exige a reconstrução coercitiva dos homens.

Mas a justiça na Terra é um sonho impossível. O homem não tem a onipotência de Deus nem sua onisciência: ele não pode controlar nem ver todas as coisas. Faltando conhecimento total, sua instituição da justiça, mesmo em mãos divinizadas, é no máximo parcial e incompleta. Nem todo erro pode ser consertado, nem todo equilíbrio pode ser restaurado. O homem pode viver, sob Deus, em uma sociedade justa, mas nunca neste mundo em uma sociedade totalmente justa. Para o estado humanista, buscar justiça total significa reclamar a onipotência de Deus: o estado precisa exercer poder total para justiça total. Da mesma forma, ele deve reclamar a onisciência de Deus: ele precisa ter um conhecimento total de todas as pessoas, instituições, e coisas. A burocracia é criada para exercer esses poderes "divinos".

Na perspectiva Bíblica, o homem enquanto pecador precisa de Regeneração. Como um pecador, ele não pode estabelecer uma ordem justa, apenas uma má. Pelo poder de Regeneração de Deus em Cristo, ele é uma nova criatura. Ele está agora habilitado a servir a Deus, a instituir uma ordem em termos da Lei de Deus, e para saber o que a justiça divina é, e a seguir isso. Ele sabe que apenas no eterno Reino de Deus a justiça total é possível, ou seja, mesmo que ele se esforce para obedecer Deus em todas as coisas, ele sabe que ele não pode esperar de homens e sociedades imperfeitos uma justiça total e perfeita. Da mesma forma, apenas uma nova criatura pode esculpir uma nova criação. Uma ordem legal e um estado dedicados a uma fé humanista na justiça total criará Revolução total. Uma ordem dedicada à inteira Palavra de Deus e ao poder regenerativo de Cristo pode dar justiça, porque ela reside em um novo homem pelas mãos de Deus, não dos homens.

(Retirado de Roots of Reconstruction, p. 1047; Chalcedon Report No. 180, August, 1980)

Rev. R.J. Rushdoony (1916-2001) foi o fundador do Chalcedon e um teólogo famoso, especialista na relação entre Estado e Igreja, e autor de inúmeros trabalhos para a aplicação da Lei Bíblica para a sociedade.

Tradução por Antonio Vitor.

Essa tradução foi autorizada por Mark Rushdoony, filho de Rousas John Rushdoony.



A RAZÃO ESTÁ MORTA
por Francis Schaeffer .

O selo do Iluminismo era “A Razão é a Rainha”. Os pensadores seguintes conscientemente negaram a necessidade da Revelação. Como Paul Hazard no pensamento Europeu no séc. XVIII diz, eles põem o cristianismo em julgamento.
Gradualmente, contudo, os problemas da coroação da razão humana emergiram. A razão do homem não era grande o suficiente pras grandes questões, e o que ao homem foi deixado foi o conhecimento relativo e a verdade relativa. Ao invés de aceitarem a derrota diante da Revelação de Deus, os humanistas estenderam a revolução além – e em uma direção que seria impensável aos seus predecessores do século XVIII. O irracionalismo moderno nasceu.

Nós poderíamos voltar até Immanuel Kant (1724-1804) na filosofia e a Friederich Schleiermacher (1768-1834) na teologia. O existencialismo moderno é também relacionado a Soren Kierkegaard (1813-1855). De qualquer forma, nossa intenção aqui não é nem entrar na história do irracionalismo, nem examinar os proponentes do existencialismo no nosso próprio século, mas antes nos concentrarmos em sua tese principal. É isso que nos confronta por todos os lados hoje, e é impossível entender o homem moderno sem entender esse conceito.
Como nós devemos lidar com muitos termos a partir de agora, nós pediríamos ao leitor que prestasse atenção cuidadosamente. Quando nós falamos de irracionalismo ou existencialismo ou metodologia existencial, nós estamos apontando para uma ideia muito simples. Isso pode ter sido expressado em uma variedade de maneiras complicadas pelos filósofos, mas não é um conceito difícil.

Imagine que você está no cinema assistindo a um filme de suspense. A medida que a história se desenrola, a tensão aumenta até finalmente o herói ser preso em alguma situação impossível e todos estão gemendo interiormente, imaginando como ele sairá do problema: o suspense é intensificado pelo conhecimento (da plateia, não do herói) que a ajuda está a caminho na forma de pessoas boas. A única questão é: as pessoas boas chegarão a tempo?

Agora imagine por um momento que a audiência comete o erro de achar que não existem pessoas boas, e que a situação do herói não é apenas terrível, mas completamente desesperadora. Obviamente, a primeira coisa que aconteceria seria que o suspense do filme iria embora. Você e toda a audiência iriam simplesmente esperar que o machado caísse.

Se o herói enfrentasse a situação com coragem, seria moralmente edificante, mas a situação em si seria trágica. Se, por outro lado, o herói agisse como se a ajuda estivesse se aproximando e mantivesse-se com esse pensamento (“Alguém está a caminho!” – “A ajuda está a um passo!”), tudo o que vocês sentiriam por ele seria pena. Seria um meio de manter a esperança viva numa situação desesperadora. A esperança do herói não muda nada do lado de fora; seria impossível fabricar, a partir do nada, pessoas boas vindo resgatá-lo. Tudo o que isso conseguiria seria o estado de esperança no lugar do desespero na própria mente do herói.

A esperança por si estaria fundada numa mentira ou uma ilusão e, portanto, vista objetivamente, seria finalmente absurda. E se o herói realmente soubesse da real situação, mas conscientemente usasse de falsidade pra não deprimir-se e continuasse assobiando enquanto isso, nós diríamos “Pobre homem!” ou “Ele é um tolo!” Esse é o tipo de engano consciente que alguém como Woody Allen olhou na face e do qual não terá nem um pouco.

Agora disto que trata a metodologia existencial. Se o universo em que estamos vivendo é como os materialistas humanistas dizem, então com nossa razão (quando nós paramos de pensar nisso) nós não poderíamos encontrar absolutamente nenhum caminho para a moralidade, ou esperança ou beleza. Mergulharíamos no desespero. Nós teríamos que tomar seriamente o desafio de Albert Camus (1913-1960) em sua primeira sentença de O Mito de Sísifo:

“Existe apenas um único problema filosófico sério, e ele é o suicídio.”

Por que permanecer vivo em um universo absurdo? Ah! Mas não é aí que paramos. Nós dizemos a nós mesmos “Existe esperança!” (mesmo pensando que não existe ajuda). “Nós devemos triunfar!” (mesmo pensando que nada é mais certo que nós devemos ser destruídos, ambos individualmente na morte e cosmicamente com o fim de toda vida consciente). É isso o que confronta-nos de todos os lados hoje: o irracionalismo moderno.

[por Francis Schaeffer em "The Basis of Human Dignity". - Tradução por Antonio Vitor.]