terça-feira, 8 de junho de 2021

APOLOGÉTICA CLÁSSICA x APOLOGÉTICA VANTILIANA


 
[Nota: Este texto é uma adaptação livre da argumentação de James H. Anderson, com acréscimos e ênfases meus.]

Vantilianos entendem que há uma diferença fundamental entre (1) conhecer a existência de Deus e (2) demonstrar a existência de Deus. A demonstração da existência de Deus (2) é a preocupação dos apologetas. É aqui que a diferença entre a apologética vantiliana e a apologética clássica se torna mais clara.

Tomistas, conforme veem os vantilianos, tendem a opor (1) e (2) em alguma medida. Para aqueles, uma coisa é a prioridade ontológica de Deus e outra é a prioridade sensorial no conhecimento. Parafrasearei aqui uma ilustração do Dr. Howe, tomista, porque ela é muito boa.

- Imagine o mapa do Brasil e o caminho que leva à cidade fictícia de São Bernardo das Canetas. A cidade de São Bernardo precisa existir antes que exista um mapa que mostre o caminho àquela cidade, e para encontrá-la, nós precisamos antes de um mapa. 

Deus existe antes do conhecimento que o ser humano pode ter de Deus. A forma como conhecemos a existência de Deus não tem nada a ver com a prioridade ontológica de Deus, porque Ele criou o mundo. Destarte, a nossa epistemologia, o caminho pelo qual nós acabamos conhecendo a Deus não quer dizer nada sobre a prioridade metafísica de Deus. 

O tomista portanto entende que, para conhecer a existência de Deus, nós não podemos "começar" com Deus em si. Nós devemos começar pelos sentidos e pela razão. Pequena confusão ocorre em decorrência da equivocidade dos termos. O que um sistema de pensamento chama de racional pode ser diferente do que outro sistema de pensamento chama pelo mesmo nome. Clark, por exemplo, diria que Tomás tem uma pitada de empirismo, o que chocaria um tomista. Contudo, ele não quer dizer que Tomás é um empirista no sentido moderno. Clark reconhecia duas fontes na epistemologia tomista [v. "Três Tipos de Filosofia Religiosa"]. É talvez seguro dizer que no tomismo o conhecimento começa pelos sentidos [v. Etienne Gilson]. Essa é a razão própria do argumento do Motor Imóvel. Começando pelos sentidos, sem qualquer referência à Revelação especial de Deus, seria possível concluir a existência d'Ele. Em suma, Deus é anterior ontologicamente, mas posterior epistemologicamente. Deus existe antes do nosso conhecimento de Deus, mas Deus não existe no começo do nosso conhecimento. Da mesma forma como na figura do Dr. Howe, São Bernardo das Canetas só é descoberta no fim da estrada que trilhamos seguindo o mapa.

Essa é a base para a acusação de argumento circular de tomistas contra pressuposicionalistas, que estes (ao menos nos EUA) já debateram até os limites da paciência. Alguns tomistas, como Geisler e Sproul (segundo uma fonte secundária à qual recorri), disseram então que vantilianos confundem a "ordem do ser" (metafísica) com a "ordem do conhecimento"(epistemologia). Quando fazem isso, porém, eles já estão dentro de um esquema basicamente tomista. A apologética clássica busca apelar à "razão natural", à razão (neutra) que não precisa recorrer à Bíblia, aquela que todo ser humano supostamente possui e na qual pode haver um suposto diálogo "racional", para conduzir o não-cristão ao Deus cristão. Essa "razão natural", eles entendem, é o ponto comum entre todos os seres humanos, e seus argumentos são supostamente o que Paulo queria dizer em Romanos 1. Ou seja, para os tomistas, Deus não pode ser conhecido "diretamente", mas apenas "indiretamente", por seus efeitos - com exceção do conhecimento advindo da Revelação.

Para alguém educado no tomismo, essa questão não é motivo de controvérsia. 

Mas voltemos à distinção entre (1) e (2). Uma coisa é conhecer a existência de Deus e outra é demonstrá-la. E nesse ponto, mesmo indivíduos simpáticos a Van Til podem cair no erro de confundir a premissa de um argumento com a pressuposição de um argumento. 

Um argumento genuinamente vantiliano não é: (a) O Deus da Bíblia é o Deus verdadeiro; (b) (segunda premissa); portanto (c) o Deus da Bíblia é o Deus verdadeiro. 

A apologética pressuposicionalista é antes de mais nada uma crítica transcendental (que transcende, vai além do que é imanente, do que alcançamos pela experiência e pelos sentidos). A apologética vantiliana não confunde a ontologia e epistemologia exatamente porque depende precisamente da diferenciação das duas. Van Til apresenta um argumento basicamente epistemológico para chegar à conclusão metafísica em forma de argumento transcendental. Ele busca mostrar que o Deus Triúno é uma condição sem a qual o conhecimento é impossível. Ele busca levar o não-cristão aos fundamentos do conhecimento humano. Dados os efeitos do pecado, a Palavra de Deus é tomada como necessária para o correto entendimento da metafísica, e somente o Deus Triúno fornece a precondição sólida para que o conhecimento humano exista. De forma que um pressuposicionalista poderia dizer a grosso modo: (a) você experimenta o bem e o mal em sua vida, apesar dos efeitos da Queda; (b) isso não aconteceria caso o Deus cristão não existisse; portanto, (c) Deus existe. Ou: (a) se Deus não existisse, você não saberia que Bolsonaro é presidente do Brasil; (b) você sabe que Bolsonaro é presidente do Brasil; portanto, (c) Deus existe.

Então, em certo sentido, Van Til também começa pela razão e pelos sentidos. Ele assume que existe conhecimento humano, que ele é possível; e só é possível por causa do Deus Trino. Onde está então a diferença? Na autoridade

Voltando à analogia do mapa do Dr. Howe, o que um vantiliano argumentaria? Ele concorda que Pindaíba precisa existir antes do mapa que leva a essa cidade fictícia. Ele apenas pergunta: quem fez o mapa? Como é possível que um mapa exista? Ora, alguém fez esse mapa. É preciso que um profissional tenha feito as medições e o reconhecimento da área para que depois pudesse fazer o mapa. O vantiliano dirá: "o mapa não tem autoridade em si mesmo"! "Ora, e quem disse que você está lendo o mapa corretamente"? 

É necessário entender as siglas do autor do mapa. Você precisa entender todos os signos. Por isso, você só pode ler o mapa corretamente caso você conheça algo que o autor do mapa escreveu. 

A apologética pressuposicional, portanto, não nega a diferença entre metafísica e epistemologia, mas, pelo contrário, reforça a sua interdependência. Se você é um americano e não sabe a medida do quilômetro (americanos usam "milhas"), pode ser que você não coloque gasolina suficiente no carro, ou que você entre na curva errada.

Trocando em miúdos: se imaginarmos que nossa cidade fictícia é Deus , o mapa seria os sentidos e a razão humana e as pressuposições do autor do mapa (sistema métrico) são a Revelação Especial de Deus, ou melhor, as pressuposições genuinamente cristãs derivadas dessa Revelação.

Cornelius rejeita a apologética tradicional porque, em última instância, ela é inconsistente em seu propósito, entendendo que um cristão não pode usar uma epistemologia não-cristã esperando ter resultado cristão consistente. Em algum lugar, mesmo que não pareça, a coisa vai dar errado. E para Van Til é impossível que não dê, em virtude dos fundamentos. Para ele, ainda, utilizar a epistemologia correta, por razão do reconhecimento da autoridade última, é também um problema ético. Quem tem mais autoridade para ler o mapa? Quem conhece os signos do autor do mapa ou quem não conhece?

Compreenda-se, pois, que tomistas e vantilianos discordam sobre a interpretação de Romanos 1 e 2.

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