Na interpretação da história do pensamento de Herman Dooyeweerd, a história do Ocidente é marcada por quatro manifestações distintas. Primeiro, na Grécia, o motivo Forma-Matéria, o motivo bíblico Criação-Queda-Redenção, o motivo Escolástico Graça-Natureza e o motivo moderno Liberdade-Natureza.
Para Dooyeweerd, o motivo bíblico é diferente dos demais motivos por possuir uma unidade interna. No cristianismo, não se pode falar de Criação sem falar de Queda e sem falar também de Redenção. Van Til acrescentaria, sem conflito com Dooyeweerd nesse ponto específico, que o motivo bíblico também soluciona o problema dos motivos pagãos ao conciliar história e eternidade, sem confundi-los.
Os demais motivos, por outro lado, possuem um conflito interno inerente. Para o holandês, o motivo da filosofia grega nasceu do antigo conflito das duas religiões gregas: as antigas religiões da natureza e a "nova" religião cultural grega.
Os titãs, na mitologia grega, seriam uma representação idólatra das religiões que cultuavam forças inanimadas. A Mãe-Terra, Gaia, era mãe de todos os titãs. Mas a "natureza" era vista como um lugar hostil. Com o Pecado de Adão e Eva, a natureza tornou-se o lugar dos espinhos, das tempestades, do caos, das feras selvagens. Na mitologia, por isso, nasceram os deuses do Olimpo, que lutavam contra os titãs. Os deuses dessa nova religião cultural eram deuses da ordem, que continham os titãs, que dominavam a natureza e forneciam estabilidade e glória. Esse conflito inerente na mente primitiva dos gregos daria origem ao motivo dos filósofos gregos, forma-matéria, ou seja, uma luta entre coisas eternas e o caos, a mudança. Esse conflito está na raiz mesma do pensamento grego e é insolúvel. Trata-se de um conflito básico, que dá origem a todo o pensamento grego.
O motivo bíblico encontrou seu lugar, segundo o holandês, principalmente com Agostinho, mesmo que Dooyeweerd entenda que Agostinho não se livrou totalmente do motivo grego. Mas, em sua análise da história do pensamento, o holandês vê que a apostasia cultural cristã deu-se na Baixa Idade Média, quando a introdução de Aristóteles trouxe os motivos-básicos da religião grega para dentro da Cristandade.
É dito que Tomás de Aquino "sintetizou" o pensamento de Aristóteles e as Doutrinas Cristãs. Isso só foi possível porque assumiu-se que a filosofia de Aristóteles era em grande medida "religiosamente neutra". Aquino entendeu que a epistemologia aristotélica tinha a ver com aquilo que Paulo falou em Romanos 1 e 2. E talvez a maior contribuição de Dooyeweerd seja precisamente demonstrar a impossibilidade de existir neutralidade em qualquer pensamento humano. Isso se deve ao fato de o homem ser um ser religioso; a redução do ser humano a um ser racional, em si, se deve a pressupostos religiosos que ignoram premissas bíblicas. O ser humano é racional, mas é mais do que isso. Ele é religioso. Todo o seu pensamento racional é submetido a alguma forma religiosa, que lida com os aspectos religiosos do pensamento, tal como o Absoluto, a Soberania, a Infalibilidade, etc.
Com a introdução de Aristóteles, o motivo Graça-Natureza (que já existia em menor medida na Alta Idade Média) consolidou-se. Mas assim como no pensamento grego, esse motivo diz respeito a duas forças pré-teóricas que têm um conflito interno insolúvel.
O conflito interno desses motivos duais não se revela em toda a sua força no início. Apenas com o desenrolar do pensamento teórico é que esse conflito vai se tornando mais e mais consciente. Aquilo que parece ter um equilíbrio vai mostrando cada vez mais e mais disparidade.
É por isso que Dooyeweerd tem uma visão de Guilherme de Occam que é distinta da visão dos tomistas. Para ele, Occam apenas revelou a incompatibilidade interna do motivo Graça-Natureza. E quando esse dualismo finalmente explodiu, ele deu origem a duas forças antitéticas: a Reforma Protestante, do lado da Graça; e a Modernidade, do lado da Natureza, agora com um novo dualismo interno, o motivo Liberdade-Natureza.
Esta é a razão pela qual eu procuro demonstrar (como o leitor pode averiguar em outras publicações deste blog), com amplitude de fontes, que a Reforma Protestante é a pior inimiga do Humanismo e é anti-moderna em essência, razão pela qual as interpretações da modernidade que apontam a Reforma como sua causa são falsas, embora haja vários aspectos a serem considerados.
[Nota: Herman Dooyeweerd afirma que o motivo escolástico medieval Graça-Natureza retornou ao mundo protestante rapidamente, no Escolasticismo Protestante.]
Groen van Prinsterer percebeu que a causa primeira da Revolução Francesa foi um "conceito ateísta de liberdade". Ao mesmo tempo, como reconhece "Leo Strauss", as revoluções modernas apelaram a visões de "natureza" para libertar-se dos "laços da religião". Sumarizando toda essa interpretação é que Francis Schaeffer pôde afirmar: "a Natureza engoliu a Graça".
[Nota: precisamos destacar que o motivo "natureza" na modernidade é diferente do motivo "natureza" dos escolásticos, mesmo que sejam interligados.]
O motivo moderno, então, unindo o conceito ateísta de liberdade da personalidade humana identificado por Prinsterer e as revoluções baseadas em formas de lei natural (Strauss), estavam presentes na filosofia moderna desde René Descartes. Contudo, esse motivo não mostrou sua luta interna em toda a sua plenitude desde o início.
Como requer um período de amadurecimento, demorou algum tempo até que a Liberdade e a Natureza entrassem em conflito explícito.
Esse conflito já está maduro na nossa cultura desde o século XX. O motivo básico Liberdade amadureceu na forma do Existencialismo de Sartre. O Existencialismo nega toda e qualquer limitação para a liberdade, ao ponto de negar a existência de uma natureza humana. A ideologia de gênero é um efeito dessa liberdade absoluta buscada pela modernidade. Você é livre até mesmo para negar suas verdades biológicas. Percebam o conflito: liberdade versus biologia, i.e., liberdade versus natureza.
Ao mesmo tempo, a modernidade deu fruto a uma visão completamente contrária à existencialista. O behaviorismo, também chamado de "comportamentalismo", nega que exista "liberdade" no ser humano. Somos apenas máquinas biológicas agindo conforme as inclinações de nossas naturezas e de nossos genes. Esse aspecto embasa todas as formas de controle social e de engenharia social. Mas ele também pode revelar um argumento que impulsiona a liberdade que ela mesmo elimina.
Como Rushdoony explica, o Marquês de Sade não era apenas um romancista; era de certa forma um pensador. De Sade colocou os desejos humanos contra a moral cristã. Se nossa natureza tem certos desejos, eles são normais. A moral cristã, então, seria uma alienígena, uma imposição anti-natural. E o mesmo movimento homossexual que nega a natureza biológica utilizará esse argumento contra o Cristianismo. Eles mesmos dizem: homossexualidade é natural, existe até entre os animais (irracionais). Tanto a liberdade moderna choca-se com o Cristianismo quanto a "natureza" dos modernos choca-se com o cristianismo, mas, ainda, a liberdade moderna choca-se com a própria natureza moderna.
Essa contradição do pensamento moderno é inerente. Ela já existe na raiz mesma do pensamento moderno e só produzirá conflito. A diferença é que a pós-modernidade amadureceu o conflito.
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