quinta-feira, 10 de junho de 2021

HERMAN DOOYEWEERD: HISTÓRIA DO PENSAMENTO OCIDENTAL




Na interpretação da história do pensamento de Herman Dooyeweerd, a história do Ocidente é marcada por quatro manifestações distintas. Primeiro, na Grécia, o motivo Forma-Matéria, o motivo bíblico Criação-Queda-Redenção, o motivo Escolástico Graça-Natureza e o motivo moderno Liberdade-Natureza.

Para Dooyeweerd, o motivo bíblico é diferente dos demais motivos por possuir uma unidade interna. No cristianismo, não se pode falar de Criação sem falar de Queda e sem falar também de Redenção. Van Til acrescentaria, sem conflito com Dooyeweerd nesse ponto específico, que o motivo bíblico também soluciona o problema dos motivos pagãos ao conciliar história e eternidade, sem confundi-los.

Os demais motivos, por outro lado, possuem um conflito interno inerente. Para o holandês, o motivo da filosofia grega nasceu do antigo conflito das duas religiões gregas: as antigas religiões da natureza e a "nova" religião cultural grega.

Os titãs, na mitologia grega, seriam uma representação idólatra das religiões que cultuavam forças inanimadas. A Mãe-Terra, Gaia, era mãe de todos os titãs. Mas a "natureza" era vista como um lugar hostil. Com o Pecado de Adão e Eva, a natureza tornou-se o lugar dos espinhos, das tempestades, do caos, das feras selvagens. Na mitologia, por isso, nasceram os deuses do Olimpo, que lutavam contra os titãs. Os deuses dessa nova religião cultural eram deuses da ordem, que continham os titãs, que dominavam a natureza e forneciam estabilidade e glória. Esse conflito inerente na mente primitiva dos gregos daria origem ao motivo dos filósofos gregos, forma-matéria, ou seja, uma luta entre coisas eternas e o caos, a mudança. Esse conflito está na raiz mesma do pensamento grego e é insolúvel. Trata-se de um conflito básico, que dá origem a todo o pensamento grego.

O motivo bíblico encontrou seu lugar, segundo o holandês, principalmente com Agostinho, mesmo que Dooyeweerd entenda que Agostinho não se livrou totalmente do motivo grego. Mas, em sua análise da história do pensamento, o holandês vê que a apostasia cultural cristã deu-se na Baixa Idade Média, quando a introdução de Aristóteles trouxe os motivos-básicos da religião grega para dentro da Cristandade.

É dito que Tomás de Aquino "sintetizou" o pensamento de Aristóteles e as Doutrinas Cristãs. Isso só foi possível porque assumiu-se que a filosofia de Aristóteles era em grande medida "religiosamente neutra". Aquino entendeu que a epistemologia aristotélica tinha a ver com aquilo que Paulo falou em Romanos 1 e 2. E talvez a maior contribuição de Dooyeweerd seja precisamente demonstrar a impossibilidade de existir neutralidade em qualquer pensamento humano. Isso se deve ao fato de o homem ser um ser religioso; a redução do ser humano a um ser racional, em si, se deve a pressupostos religiosos que ignoram premissas bíblicas. O ser humano é racional, mas é mais do que isso. Ele é religioso. Todo o seu pensamento racional é submetido a alguma forma religiosa, que lida com os aspectos religiosos do pensamento, tal como o Absoluto, a Soberania, a Infalibilidade, etc.

Com a introdução de Aristóteles, o motivo Graça-Natureza (que já existia em menor medida na Alta Idade Média) consolidou-se. Mas assim como no pensamento grego, esse motivo diz respeito a duas forças pré-teóricas que têm um conflito interno insolúvel. 

O conflito interno desses motivos duais não se revela em toda a sua força no início. Apenas com o desenrolar do pensamento teórico é que esse conflito vai se tornando mais e mais consciente. Aquilo que parece ter um equilíbrio vai mostrando cada vez mais e mais disparidade.

É por isso que Dooyeweerd tem uma visão de Guilherme de Occam que é distinta da visão dos tomistas. Para ele, Occam apenas revelou a incompatibilidade interna do motivo Graça-Natureza. E quando esse dualismo finalmente explodiu, ele deu origem a duas forças antitéticas: a Reforma Protestante, do lado da Graça; e a Modernidade, do lado da Natureza, agora com um novo dualismo interno, o motivo Liberdade-Natureza.

Esta é a razão pela qual eu procuro demonstrar (como o leitor pode averiguar em outras publicações deste blog), com amplitude de fontes, que a Reforma Protestante é a pior inimiga do Humanismo e é anti-moderna em essência, razão pela qual as interpretações da modernidade que apontam a Reforma como sua causa são falsas, embora haja vários aspectos a serem considerados.

[Nota: Herman Dooyeweerd afirma que o motivo escolástico medieval Graça-Natureza retornou ao mundo protestante rapidamente, no Escolasticismo Protestante.]

Groen van Prinsterer percebeu que a causa primeira da Revolução Francesa foi um "conceito ateísta de liberdade". Ao mesmo tempo, como reconhece "Leo Strauss", as revoluções modernas apelaram a visões de "natureza" para libertar-se dos "laços da religião". Sumarizando toda essa interpretação é que Francis Schaeffer pôde afirmar: "a Natureza engoliu a Graça". 

[Nota: precisamos destacar que o motivo "natureza" na modernidade é diferente do motivo "natureza" dos escolásticos, mesmo que sejam interligados.]

O motivo moderno, então, unindo o conceito ateísta de liberdade da personalidade humana identificado por Prinsterer e as revoluções baseadas em formas de lei natural (Strauss), estavam presentes na filosofia moderna desde René Descartes. Contudo, esse motivo não mostrou sua luta interna em toda a sua plenitude desde o início.

Como requer um período de amadurecimento, demorou algum tempo até que a Liberdade e a Natureza entrassem em conflito explícito.

Esse conflito já está maduro na nossa cultura desde o século XX. O motivo básico Liberdade amadureceu na forma do Existencialismo de Sartre. O Existencialismo nega toda e qualquer limitação para a liberdade, ao ponto de negar a existência de uma natureza humana. A ideologia de gênero é um efeito dessa liberdade absoluta buscada pela modernidade. Você é livre até mesmo para negar suas verdades biológicas. Percebam o conflito: liberdade versus biologia, i.e., liberdade versus natureza.

Ao mesmo tempo, a modernidade deu fruto a uma visão completamente contrária à existencialista. O behaviorismo, também chamado de "comportamentalismo", nega que exista "liberdade" no ser humano. Somos apenas máquinas biológicas agindo conforme as inclinações de nossas naturezas e de nossos genes. Esse aspecto embasa todas as formas de controle social e de engenharia social. Mas ele também pode revelar um argumento que impulsiona a liberdade que ela mesmo elimina.

Como Rushdoony explica, o Marquês de Sade não era apenas um romancista; era de certa forma um pensador. De Sade colocou os desejos humanos contra a moral cristã. Se nossa natureza tem certos desejos, eles são normais. A moral cristã, então, seria uma alienígena, uma imposição anti-natural. E o mesmo movimento homossexual que nega a natureza biológica utilizará esse argumento contra o Cristianismo. Eles mesmos dizem: homossexualidade é natural, existe até entre os animais (irracionais). Tanto a liberdade moderna choca-se com o Cristianismo quanto a "natureza" dos modernos choca-se com o cristianismo, mas, ainda, a liberdade moderna choca-se com a própria natureza moderna.

Essa contradição do pensamento moderno é inerente. Ela já existe na raiz mesma do pensamento moderno e só produzirá conflito. A diferença é que a pós-modernidade amadureceu o conflito.

terça-feira, 8 de junho de 2021

APOLOGÉTICA CLÁSSICA x APOLOGÉTICA VANTILIANA


 
[Nota: Este texto é uma adaptação livre da argumentação de James H. Anderson, com acréscimos e ênfases meus.]

Vantilianos entendem que há uma diferença fundamental entre (1) conhecer a existência de Deus e (2) demonstrar a existência de Deus. A demonstração da existência de Deus (2) é a preocupação dos apologetas. É aqui que a diferença entre a apologética vantiliana e a apologética clássica se torna mais clara.

Tomistas, conforme veem os vantilianos, tendem a opor (1) e (2) em alguma medida. Para aqueles, uma coisa é a prioridade ontológica de Deus e outra é a prioridade sensorial no conhecimento. Parafrasearei aqui uma ilustração do Dr. Howe, tomista, porque ela é muito boa.

- Imagine o mapa do Brasil e o caminho que leva à cidade fictícia de São Bernardo das Canetas. A cidade de São Bernardo precisa existir antes que exista um mapa que mostre o caminho àquela cidade, e para encontrá-la, nós precisamos antes de um mapa. 

Deus existe antes do conhecimento que o ser humano pode ter de Deus. A forma como conhecemos a existência de Deus não tem nada a ver com a prioridade ontológica de Deus, porque Ele criou o mundo. Destarte, a nossa epistemologia, o caminho pelo qual nós acabamos conhecendo a Deus não quer dizer nada sobre a prioridade metafísica de Deus. 

O tomista portanto entende que, para conhecer a existência de Deus, nós não podemos "começar" com Deus em si. Nós devemos começar pelos sentidos e pela razão. Pequena confusão ocorre em decorrência da equivocidade dos termos. O que um sistema de pensamento chama de racional pode ser diferente do que outro sistema de pensamento chama pelo mesmo nome. Clark, por exemplo, diria que Tomás tem uma pitada de empirismo, o que chocaria um tomista. Contudo, ele não quer dizer que Tomás é um empirista no sentido moderno. Clark reconhecia duas fontes na epistemologia tomista [v. "Três Tipos de Filosofia Religiosa"]. É talvez seguro dizer que no tomismo o conhecimento começa pelos sentidos [v. Etienne Gilson]. Essa é a razão própria do argumento do Motor Imóvel. Começando pelos sentidos, sem qualquer referência à Revelação especial de Deus, seria possível concluir a existência d'Ele. Em suma, Deus é anterior ontologicamente, mas posterior epistemologicamente. Deus existe antes do nosso conhecimento de Deus, mas Deus não existe no começo do nosso conhecimento. Da mesma forma como na figura do Dr. Howe, São Bernardo das Canetas só é descoberta no fim da estrada que trilhamos seguindo o mapa.

Essa é a base para a acusação de argumento circular de tomistas contra pressuposicionalistas, que estes (ao menos nos EUA) já debateram até os limites da paciência. Alguns tomistas, como Geisler e Sproul (segundo uma fonte secundária à qual recorri), disseram então que vantilianos confundem a "ordem do ser" (metafísica) com a "ordem do conhecimento"(epistemologia). Quando fazem isso, porém, eles já estão dentro de um esquema basicamente tomista. A apologética clássica busca apelar à "razão natural", à razão (neutra) que não precisa recorrer à Bíblia, aquela que todo ser humano supostamente possui e na qual pode haver um suposto diálogo "racional", para conduzir o não-cristão ao Deus cristão. Essa "razão natural", eles entendem, é o ponto comum entre todos os seres humanos, e seus argumentos são supostamente o que Paulo queria dizer em Romanos 1. Ou seja, para os tomistas, Deus não pode ser conhecido "diretamente", mas apenas "indiretamente", por seus efeitos - com exceção do conhecimento advindo da Revelação.

Para alguém educado no tomismo, essa questão não é motivo de controvérsia. 

Mas voltemos à distinção entre (1) e (2). Uma coisa é conhecer a existência de Deus e outra é demonstrá-la. E nesse ponto, mesmo indivíduos simpáticos a Van Til podem cair no erro de confundir a premissa de um argumento com a pressuposição de um argumento. 

Um argumento genuinamente vantiliano não é: (a) O Deus da Bíblia é o Deus verdadeiro; (b) (segunda premissa); portanto (c) o Deus da Bíblia é o Deus verdadeiro. 

A apologética pressuposicionalista é antes de mais nada uma crítica transcendental (que transcende, vai além do que é imanente, do que alcançamos pela experiência e pelos sentidos). A apologética vantiliana não confunde a ontologia e epistemologia exatamente porque depende precisamente da diferenciação das duas. Van Til apresenta um argumento basicamente epistemológico para chegar à conclusão metafísica em forma de argumento transcendental. Ele busca mostrar que o Deus Triúno é uma condição sem a qual o conhecimento é impossível. Ele busca levar o não-cristão aos fundamentos do conhecimento humano. Dados os efeitos do pecado, a Palavra de Deus é tomada como necessária para o correto entendimento da metafísica, e somente o Deus Triúno fornece a precondição sólida para que o conhecimento humano exista. De forma que um pressuposicionalista poderia dizer a grosso modo: (a) você experimenta o bem e o mal em sua vida, apesar dos efeitos da Queda; (b) isso não aconteceria caso o Deus cristão não existisse; portanto, (c) Deus existe. Ou: (a) se Deus não existisse, você não saberia que Bolsonaro é presidente do Brasil; (b) você sabe que Bolsonaro é presidente do Brasil; portanto, (c) Deus existe.

Então, em certo sentido, Van Til também começa pela razão e pelos sentidos. Ele assume que existe conhecimento humano, que ele é possível; e só é possível por causa do Deus Trino. Onde está então a diferença? Na autoridade

Voltando à analogia do mapa do Dr. Howe, o que um vantiliano argumentaria? Ele concorda que Pindaíba precisa existir antes do mapa que leva a essa cidade fictícia. Ele apenas pergunta: quem fez o mapa? Como é possível que um mapa exista? Ora, alguém fez esse mapa. É preciso que um profissional tenha feito as medições e o reconhecimento da área para que depois pudesse fazer o mapa. O vantiliano dirá: "o mapa não tem autoridade em si mesmo"! "Ora, e quem disse que você está lendo o mapa corretamente"? 

É necessário entender as siglas do autor do mapa. Você precisa entender todos os signos. Por isso, você só pode ler o mapa corretamente caso você conheça algo que o autor do mapa escreveu. 

A apologética pressuposicional, portanto, não nega a diferença entre metafísica e epistemologia, mas, pelo contrário, reforça a sua interdependência. Se você é um americano e não sabe a medida do quilômetro (americanos usam "milhas"), pode ser que você não coloque gasolina suficiente no carro, ou que você entre na curva errada.

Trocando em miúdos: se imaginarmos que nossa cidade fictícia é Deus , o mapa seria os sentidos e a razão humana e as pressuposições do autor do mapa (sistema métrico) são a Revelação Especial de Deus, ou melhor, as pressuposições genuinamente cristãs derivadas dessa Revelação.

Cornelius rejeita a apologética tradicional porque, em última instância, ela é inconsistente em seu propósito, entendendo que um cristão não pode usar uma epistemologia não-cristã esperando ter resultado cristão consistente. Em algum lugar, mesmo que não pareça, a coisa vai dar errado. E para Van Til é impossível que não dê, em virtude dos fundamentos. Para ele, ainda, utilizar a epistemologia correta, por razão do reconhecimento da autoridade última, é também um problema ético. Quem tem mais autoridade para ler o mapa? Quem conhece os signos do autor do mapa ou quem não conhece?

Compreenda-se, pois, que tomistas e vantilianos discordam sobre a interpretação de Romanos 1 e 2.