Para Collin Russell, citado por Pearcey e Charles B. Thaxton (em "A Alma da Ciência"), o mito da hostilidade entre fé cristã e ciência é de criação relativamente recente. Foi na Inglaterra do final do séc. XIX que grupos se organizaram sob a liderança de Thomas H. Huxley com o propósito de acabar com a hegemonia cultural do Cristianismo, substituindo-o pelo naturalismo científico. Huxley sabia estar apenas substituindo uma religião por outra, pois era explícito seu desejo de criar uma "igreja científica".
"As obras mais venenosas vieram de John William Draper (1811-1882) e Andrew Dickson White (1832-1918) - obras estas consideradas pela maioria dos historiadores de hoje como sendo seriamente distorcidas por causa dos propósitos polêmicos dos dois autores."
O desprezo pelo mundo medieval, que tem importância capital nessa narrativa anti-cristã da história da ciência, começou a ser reabilitado pelo físico e filósofo francês Pierre Duhem, que concluiria em sua obra que as raízes da ciência moderna estavam no alicerce construído na Idade Média.
A NATUREZA DA NATUREZA
Em certo sentido, houve civilizações mais grandiosas do que a Cristandade medieval. O Egito e a Babilônia contruíram obras arquitetônicas memoráveis, por exemplo. A China rumava a consolidação de seu vasto império. E mesmo os árabes possuíam naquele momento uma civilização rival à cristã medieval em vários aspectos.
Pearcey e os historiadores da ciência, então, perguntam-se qual teria sido a razão para que a ciência tivesse surgido na Europa Ocidental e não nessas outras culturas.
O Ocidente está hoje tão arraigado de positivismo que trata como conhecimento certo que a ciência moderna seja o desenvolvimento "natural" de qualquer sociedade humana, quando não há absolutamente nenhuma evidência que corrobore essa tese. Antes, a singularidade da Cristandade forneceu uma soma de pressuspostos únicos que tornaram o labor científico possível e até incentivado.
"Toda investigação científica depende de certos pressupostos acerca do mundo - e a existência da ciência é impossível até que esses pressupostos estejam devidamente organizados. Conforme argumenta Foster, foi necessário que os pensadores ocidentais conferissem à natureza o caráter e os atributos que a tornaram um objeto possível do estudo científico antes da instituição da ciência em si. Como diz Whitehead, 'a fé na possibilidade da ciência' precedeu o desenvolvimento da teoria científica propriamente dita."
Foi preciso que os cristãos, em suas reflexões filosóficas em diálogo com filósofos vindos do paganismo acerca da realidade criada por Deus, desenvolvessem conceitos distintivamente cristãos da realidade. Foi preciso que os cristãos medievais pensassem sobre qual é a "natureza da Natureza", em perspectiva de suas meditações sobre qual é a natureza de Deus e do ser humano.
1. A natureza é real.
Enquanto hinduístas atribuem a realidade à ilusão de Maya e outros monistas atribuem a diversidade dos fenômenos à manifestações do Absoluto, o cristianismo tem a Criação como um objeto real que poderia ser estudada.
2. A Criação é Boa.
Em Gêneses 2, Deus olhou sua Criação e disse que era "boa". Uma parte considerável dos gregos, por outro lado, acreditavam que o mundo material era ligado "ao mal e à desordem". Mesmo o trabalho manual na Grécia era uma atividade relegada aos escravos. Para budistas, a vida é sofrimento, razão pela qual o budista não deveria perder tempo com os interesses dos cientistas, buscando atingir o Nirvana, abandonando o ciclo do sofrimento. A atitude do judaísmo e do cristianismo, por outro lado, é a de gerência da realidade criada, vendo a humanidade como mordoma da obra de Deus. E especialmente a Reforma Protestante desenvolveu conceitos de vocação (mesmo fora da esfera explicitamente religiosa) e ética de trabalho.
3. Deus e sua Criação não se confundem.
Diferentemente das crenças de religiões animistas e panteístas, o Deus cristão não se manifesta através nem se confunde com aquilo que Ele criou. Ele é absolutamente transcendente, mantendo sua singularidade mesmo quando decide revelar-se ao ser humano. Os cristãos podem reconhecer sua Existência nas coisas criadas através de seus efeitos, tão somente. Em algumas religiões pagãs, o sol, a lua, os planetas e outras coisas criadas são deuses em si. O cristianismo pôde revogar o 'status religioso' da natureza, "desdeificando-a", eliminando um empecilho na atitude em relação a ela.
4. A Natureza e o Caráter do Criador.
Diferentemente dos pagãos, o Deus cristão possui algumas características que foram essenciais para que o ser humano pensasse a Criação como consequência de seu caráter.
Primeiro, como já dito, Deus é transcendente, não se confundindo com sua Obra.
Segundo, esse Deus tem uma natureza e um caráter constante. Sendo eterno, Ele não muda de opinião e não tem contradições em si. Por isso ser verdade, o cristão entende a Criação como tendo unidade e coerência. Não há uma luta entre deuses rivais, como entre os deuses gregos e os titãs. O monoteísmo foi uma pressuposição essencial para o desenvolvimento da ciência. Foi a constância de Deus e de seu caráter que pôde-se desenvolver o conceito de "leis eternas" que extrapolavam o aspecto meramente moral, conferindo ordem ao universo mesmo diante de sua diversidade. Os cientistas cristãos buscavam a ordem unificada em fenômenos distintos.
"Os primeiros cientistas não argumentavam que o mundo era ordenado por leis e que, portanto, devia existir um Deus racional. Antes, sua argumentação era que havia um Deus e, portanto, a ordem do mundo devia ser determinada por leis."
Essa ordem na natureza, com todos os fenômenos naturais aparentemente caóticos e muitas vezes assustadores, foi algo revolucionário.
5. Uma Criação fixa e proporcional.
Não apenas a Criação é ordenada por leis, aos olhos cristãos, mas essas leis poderiam ser exprimidas matematicamente. O Deus bíblico criou o universo 'ex nihilo', tendo controle absoluto sobre ele. Para Platão, por outro lado, o criador seria um demiurgo que introduziu as Formas em unidades do mundo material e caótico; a existência tanto das formas quanto da matéria seria independente do demiurgo, estando, portanto, além de seu poder. Por causa da natureza da matéria do ponto de vista platônico, o caos resistiria à ordem e eternidade das formas, sendo, portanto, uma criação imperfeita.
6. Conhecimento humano.
Finalmente, a natureza da Natureza não serviria à ciência caso o ser humano não fosse capaz de apreendê-la. Ou seja, é necessário acreditar que a razão humana é capaz de atingir determinadas verdades sobre a realidade. Essa epistemologia e essa antropologia seriam possíveis por ser Deus um Ser Racional e por ter dado ao ser humano, sua Imagem, o atributo da racionalidade. Foi essa pressuposição que deu ao ser humano o impulso prático de investigação da realidade. Não apenas o mundo é ordenado e constante, mas nós, que somos Imago Dei, podemos conhecê-lo.
[Nota: Este texto é um resumo do primeiro capítulo de "A Alma da Ciência" de Nancy Pearcey e Charles B. Thaxton. Decidi omitir algumas reflexões sobre tomismo e scottismo para que não se torne de difícil compreensão.]
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