quinta-feira, 29 de julho de 2021

"MARXISMO CULTURAL"?

 Estava conversando com o amigo Gustavo Arnoni sobre uma discordância a respeito de um trecho do livro "Identidade e Sexualidade", que desejo apresentar de forma amigável. Deixo claro que aqui não há a menor hostilidade nem arrogância de minha parte, até porque eu não sou especialista, nem sequer acadêmico. Meu intuito é apenas o de informar. Eis o trecho:

" A igreja demora muito para discernir o Zeitgeist [espírito de seu tempo]. Estamos continuamente envolvidos com a luta contra o marxismo cultural — algo que foi, com certeza, um grande problema para a igreja cristã na década de 1980 no Brasil, mas que hoje simplesmente não faz mais nenhum sentido para nossos jovens e adolescentes. Como estudante e pesquisador da faculdade de filosofia de uma universidade federal durante dez anos, tive apenas 2 aulas sobre Karl Marx. Na filosofia elas não eram ministradas. Já não havia interesse nisso. No entanto, pergunte-me: a quantas aulas de pós-estruturalismo você assistiu? Quantos seminários sobre Michel Foucault? E sobre pós-marxismo? Sobre a escola de Frankfurt? Dezenas! Centenas de publicações, congressos, seminários e minicursos. Quando a Igreja evangélica descobrir o pós-estruturalismo, daqui a 50 anos, será tarde demais. Não porque estaremos intelectualmente defasados, mas porque teremos perdido uma geração inteira para os padrões intelectuais deste século." [p. 19.]

Embora o autor esteja certo em apontar a fraqueza do debate dentro das igrejas a respeito de pós-estruturalismo, eu acredito que há um uso inadequado do termo "marxismo cultural". 

Primeiro, utiliza-se o adjetivo "cultural" aliado ao marxismo para que ele seja diferenciado da escola original. Há o marxismo e o "marxismo cultural", como categorias distintas, mesmo que detentoras de uma relação causal entre si. É o mesmo tipo de diferenciação que é feita entre os termos "justiça" e "justiça social". 

Pelo contexto, acredito que o autor esteja inadequadamente considerando "marxismo cultural" como a difusão de ideias marxistas (clássicas), com maior ou menor consistência, pela cultura brasileira. Mas não é a isso que o termo se refere.

Segundo, o termo "marxismo cultural" busca identificar precisamente um conjunto de autores e movimentos que englobam exatamente aqueles apontados como mais relevantes para o debate na igreja pelo autor, i.e., Foucault e Escola de Frankfurt, mas também Gramsci e a Nova Esquerda - e talvez possamos incluir ainda Lukács. Ainda assim, absolutamente nenhum deles chamou-se a si mesmo de "marxista cultural".

"Marxismo cultural" é um termo convencionado por autores conservadores americanos e europeus para identificar pensamentos pós-marxistas, pós-modernistas e que guardam algo do marxismo original enquanto discordam dele em alguns pontos. Este termo é inadequado em certo sentido, não podendo ser considerado "erudito", ao mesmo tempo em que é útil para identificar alguns motivos religiosos das escolas sugeridas pelo autor, denunciando sua raiz na escola marxista.

Como explicou Gary North [1] em um ensaio traduzido para o Instituto Mises no Brasil, "marxismo cultural" é um paradoxo. Marx acreditava que a cultura é a macroestrutura erguida sobre a economia, i.e., que a cultura é um produto da economia. As linhas de pensamento identificadas pelos conservadores dentro da categoria "marxismo cultural" são escolas que acreditam em uma estrutura inversa, i.e., que a economia é o produto da cultura. 

Para Marx, quando os modos de produção fossem modificados, a cultura seria modificados, razão pela qual aquele alemão não acreditava em uma revolução através da cultura. Os "marxistas culturais" acreditam que a revolução na economia só pode acontecer através de uma revolução na cultura. É claro, então, que neste quesito os marxistas culturais estão certos.

O pensamento marxista entrou em crise no fim da Primeira Guerra Mundial porque as profecias de Marx não se cumpriram. Ao invés de unirem-se internacionalmente como classe para tomar o poder das classes opressoras de seus países, os proletários uniram-se às classes burguesas, aristocráticas e religiosas de seus próprios países para enfrentar os países inimigos.

A partir dali houve uma discussão interna e os socialistas buscaram entender o que ocorrera, sendo obrigados a modificar algumas de suas teorias.

Foi assim que nasceu, por exemplo, o nazismo. Ao invés de crerem que os proletários fariam uma revolução internacionalista, a revolução mundial teria que ser movida entre nações, ou seja, ao invés de uma luta de classes, haveria uma luta de nações ou raças. Do marxismo eles mantiveram a crença de um eschaton imanentizado, com suas raízes ocultistas, e a crença de que o conflito, a luta, a guerra, a violência, conduz à evolução. Assim pensava Himmler.

Por outro lado, pensadores como Antonio Gramsci começaram a estudar as razões pelas quais o socialismo não obteve sucesso no mundo ocidental, contrariando todas as previsões. Seria a Rússia agrária e atrasada que inauguraria o socialismo, não a Inglaterra industrializada. Foi assim que vários marxistas chegaram à conclusão de que o cristianismo, a filosofia grega e o direito romano seriam os empecilhos para o "novo mundo" socialista. Se eles quisessem realizar a revolução no Ocidente, eles deveriam, primeiro, destruir esses três pilares, para que só então pudesse ocorrer uma mudança nas formas de poder.

A Escola de Frankfurt foi fundada por marxistas que refugiaram-se do nazismo. Eles perceberam que a classe proletária não poderia ser a classe revolucionária; antes, os proletários estavam satisfeitos com os avanços na qualidade de vida promovida pelo capitalismo. Aqueles pensadores, então, elegeram outras classes revolucionárias (negros, mulheres, homossexuais e até mesmo os criminosos). Eles utilizariam os marginalizados e "oprimidos" pela cultura ocidental para criar uma antítese e promover o conflito interno nos países que rejeitavam o marxismo chamado "ortodoxo".

É por essa razão que Jordan Peterson afirma que os pós-modernistas são filhos do marxismo. Embora eles não sejam marxistas ortodoxos, eles mantém determinados pontos do marxismo.

Finalmente, eu creio que a inadequação do termo como usado pelo autor Pedro Dulci não invalida sua percepção de forma genérica. É bem possível que a maior parte dos evangélicos não saiba o que "marxismo cultural" realmente quer dizer, confundindo-o realmente com as formas mais ortodoxas de marxismo e suas divisões internas, como leninismo, trotskismo, stalinismo, maoísmo, mas também a versão latino-americana, o bolivarianismo. Não obstante, ainda há trotskistas e maoístas no Brasil, dentro de partidos de esquerda como o PT. Inclusive, é por causa da diferença entre o marxismo ortodoxo e o chamado "marxismo cultural" que o PCO não se alia à causa LGBT, até porque, originalmente, os socialistas acreditavam que a homossexualidade era uma patologia causada pelo capitalismo.

Enquanto termo vulgar, de utilidade prática, o termo "marxismo cultural" busca identificar um fenômeno real através de sua ligação umbilical com o marxismo, como sendo parte de uma evolução dentro do movimento socialista internacional.

Nota: [1] North escreveu um livro chamado "Marxismo e a Religião da Revolução". Eis o texto ao qual me referi. https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1896&fbclid=IwAR0HhajMLS7-rJXgGV4Y9HX-O8DJx779i_zEOhv2h2jeH1FWUE74prtPz4s

sábado, 10 de julho de 2021

BAHNSEN: KUYPER, WARFIELD E VAN TIL




O Vantilianismo deve ser compreendido, dentre outros aspectos, com a noção de que sua obra é também uma tentativa de resolver o problema por trás da rivalidade entre Amsterdã (Abraham Kuyper) e Princeton (Benjamin B. Warfield). Cornelius Van Til estava familiarizado com as controvérsias teológicas de seu tempo. Ele havia estudado as obras de Kuyper antes mesmo de ir ao Seminário na língua original e manteve contato com os teólogos de Princeton, estando consciente das desavenças entre as duas escolas.


Warfield criticava Kuyper pelo que parecia ser um desdém deste pela apologética, pela ênfase ao papel do Espírito Santo na conversão. Para Benjamin, o fato de a fé vir pela Regeneração não exclui a racionalidade da fé: nós cremos em Cristo porque é racional crer. A fé seria uma forma de convicção necessariamente embasada em evidências. As evidências têm uma participação na conversão da alma, e uma participação que não é pequena e nem defensiva. A apologética, que seria na verdade uma "organização sistemática de evidências", não seria apenas um escudo para que cristãos protejam-se da chateação do mundo, mas uma parte primária e conquistadora para a cristianização do mundo. O cristianismo apela para a razão de forma exclusiva, como a "religião apologética".


O que Kuyper enfatizava era que a conversão era também uma conversão na disposição da mente humana. O convertido tem uma mente diferente da mente do "homem natural", o que significa realmente que ambos produzem duas ciências distintas. Duas diferentes teorias de conhecimento: de um lado, a ciência do princípio natural, do homem não-regenerado vendo tudo de uma perspectiva "natural" (e caída); e do outro a ciência do princípio sobrenatural, do homem regenerado vendo tudo de uma perspectiva sobrenatural.


Em resposta a isso, Warfield diria que o problema não é tanto de "tipo" de ciência, mas de performance. Se para o teólogo de Amsterdã o homem não-regenerado é afetado em todo seu labor científico, para o teólogo de Princeton o não-cristão produz ciência imperfeita, mas ciência verdadeira, contribuindo para a consciência humana geral ao abstrair a ciência.


Para Kuyper, todo ser humano conduz seu pensamento em relação a um princípio último, uma pressuposição básica, que, no pensamento não-cristão, é um princípio natural, pelo qual todas as coisas são interpretadas em termos do homem natural, enquanto a totalidade do pensamento do cristão genuíno é baseado em Cristo como autoridade última, razão pela qual os cristãos têm uma teoria do conhecimento própria e uma cosmovisão distinta daquela do não-cristão. A perspectiva da primeira nega a perspectiva da segunda. A sabotagem do cristianismo nas universidades é a prova disso. Os cientistas e humanistas negam qualquer trabalho com pressuposições cristãs como não sendo científicos, objetivos. Se os cristãos não usam as pressuposições não-cristãs, se os trabalhos científicos não são feitos sob uma perspectiva especificamente "naturalista", eles sequer recebem o nome de "científicos". As universidades do mundo consideram impossível assumir como verdade as verdades do Evangelho. Mas se esse é o caso, como seria possível uma apologética se os compromissos intelectuais do cristão e do não-cristão são tão radicalmente antitéticos? Para Kuyper, não seria.


Tal era a controvérsia nos dias de Van Til e é incorreto concluir que esse holandês colocou-se ao lado de Kuyper contra Warfield ou que colocou-se ao lado do teólogo de Princeton contra o teólogo de Amsterdã. Para Greg Bahnsen, é somente quando alguém compreende com o que Cornelius concordava e com o que discordava de ambos que alguém pode vislumbrar a originalidade e grandiosidade do pensamento de Van Til. A abordagem do dr. Bahnsen procura esclarecer o método daquele holandês à luz do debate entre aqueles dois teólogos, tão importantes.


Para Cornelius Van Til, a conclusão que Kuyper tirou de seu insight inicial a respeito da diferença de "tipo" entre as ciências cristã e não-cristã, das diferentes cosmovisões, não combina com outras verdades bíblicas. O não-cristão tenta seguir o princípio naturalista de forma consistente, mas, segundo Van Til, tal empreitada é impossível na prática. O não-cristão não pode fugir do poder de persuasão da Revelação de Deus na Criação e da lei de Deus em si mesmo. É a Graça Comum que impede o não-cristão de obliterar o testemunho de Deus dentro e fora de si. O incrédulo conduz sua vida e seu raciocínio em termos da Revelação de Deus, mesmo que verbalmente negue-a e convença a si mesmo que ela não existe. Não apenas o apologista pode argumentar racionalmente contra a filosofia esposada pelo não-cristão (contingência), quanto pode-se esperar que não-cristão seja capaz de compreender a inadequação de sua interpretação da realidade através dos argumentos apologéticos. O Cristianismo, portanto, deve ser apresentado como Verdade objetiva e pública comprovada para todos. Não há apenas uma atitude anti-ética do não-cristão, mas uma falha intelectual injustificável. 


Van Til publicou textos onde negou explicitamente a conclusão de Kuyper, já que Warfield estava certo em defender o Cristianismo como objetivamente defensável e que o homem natural tem a habilidade de compreender intelectualmente, embora não espiritualmente, o desafio apresentado para ele. E é imperativo que esse desafio seja apresentado para o incrédulo - pois do contrário não haverá desafio nenhum -, que por seu princípio (descrente) ele destruirá toda e qualquer verdade e significado. Daí, pela ação do Espírito Santo ele será trazido para o princípio cristão que ele se esforça em destruir. A apologética deve desafiar o não-cristão a abandonar seu princípio último, sua autonomia epistemológica, porque esse é o caminho da destruição da racionalidade.


Mas, como dito, é incorreto entender, por isso, que Van Til se colocou ao lado de B.B. Warfield contra Abraham Kuyper. Para o teólogo de Princeton, a apologética lançaria a fundação na qual a teologia sistemática funciona. Esse sistema precisaria ser fincado na realidade, de forma que a Escritura não seria a pedra fundamental na qual o acadêmico cristão deve proceder. A inspiração das Escrituras seria a última convicção à qual o cristão chegaria depois de fundamentar-se na "reta razão". Antes de termos teologia sistemática, a "reta razão" autenticaria a veracidade das Escrituras, para, então, dentro das Escrituras, nós sistematizarmos os resultados de nossas pesquisas. Para Warfield, portanto, (1) essa perspectiva deve ser anterior ao compromisso com as Escrituras e (2) deve estar de acordo com a "reta razão", i.e., deve ser autônoma (sem referência à fé), como se a ciência fosse um campo comum de interpretação do cristão e do não-cristão. O apologista, por isso, deveria começar a partir do campo neutro da "reta razão", abstrata e comum ao cristão e ao não-cristão, onde Cristo não é a autoridade final, para ser conduzido finalmente às Escrituras e à teologia sistemática, onde Cristo seria a autoridade final. Para Warfield seria possível começar com uma filosofia em que Cristo não é a autoridade última para chegar à teologia onde Cristo é a autoridade última. 


Para Van Til, essa conclusão é esquizofrênica: se Cristo é a autoridade última, Ele não precisa ser autorizado pela autoridade última da "reta razão", que não O pressupõe como autoridade maior. Se a "reta razão" tem a prerrogativa de autorizar Cristo, então ela sempre será última, tomando o lugar de Cristo. Todo ensino cristão e bíblico teria que ser julgado pela "reta razão", precisaria satisfazer a "reta razão", o que nega flagrantemente a natureza da Palavra de Deus como fonte de ensino para o ser humano, em si. Você não pode começar com o princípio de que a razão humana (neutra e autônoma) é última para concluir com um princípio diferente em que Cristo é a autoridade última. A visão de razão neutra, autônoma e hábil para o conhecimento de Cristo como autoridade final ignora as afirmações bíblicas de que o ser humano abusa de seus próprios raciocínios, vãos, e que julga tudo o que vem do Espírito de Deus como loucura e tolice. O homem natural odeia o conhecimento de Deus. Para Greg Bahnsen, a conclusão de Benjamin conduz a uma teologia ruim, onde o homem é a autoridade final, e a uma apologética ruim, onde a abordagem do não-cristão não pode receber objeção.



A RESPOSTA DE VAN TIL







Cornelius Van Til aceita as duas proposições iniciais, de Kuyper e Warfield, e rejeita as conclusões que ambos fizeram, simultaneamente. Há duas ciências, mas é impossível negar a objetividade da Revelação de Deus. A ciência do incrédulo será sempre inconsistente e condenada ao irracionalismo e ao ceticismo. Negar a Revelação de Deus é irracional e o efeito dessa negação produz a ciência do homem natural não-regenerado, que é distinta da ciência do homem-regenerado, porque tem um princípio último diferente, que rouba o lugar de Cristo. A cosmovisão do não-cristão não é racional; o "homem natural" não possui uma "reta razão" como Warfield supõe, porque ele não é capaz de "reta razão" por não ter o princípio correto. O princípio apologético do teólogo de Princeton não está, aos olhos do holandês, em conformidade com sua própria teologia reformada. Van Til afirma que, felizmente, Warfield foi muitas vezes inconsistente, porque diversas vezes ele demonstrou que a ideia de autonomia conduz à destruição da experiência humana, apelando ao que Kuyper fazia, ou seja, apelando ao senso da divindade no ser humano, que está pronto para abrir-se para o princípio cristão, rejeitando finalmente a autonomia. Kuyper também teria sido inconsistente por negar aspectos da apologética que ele mesmo ocasionalmente usou. O teólogo de Amsterdã reforçava a relação entre a autonomia e a oposição à manifestação da Verdade de Deus, mas lembrava que nenhum homem é um "produto acabado", sendo possuidor de um senso da divindade, como um verdadeiro recipiente da Graça de Deus, pronto para receber a apresentação do princípio cristão.


Van Til reconhecia em Kuyper o insight de sua análise da ideia de autonomia em Warfield, a sua insistência de que o Cristianismo é o único sistema inteligível. Por ser indubitavelmente verdadeiro, o sistema cristão pode ser distinguido intelectualmente pelo homem porque foi distinguido para ele por Deus através da Palavra. E sem pressupor essa verdade, não há teologia, filosofia e ciência que possam encontrar significado na experiência humana.


Para Bansen, finalmente, se o doutor Cornelius Van Til não é "O" grande reformador da apologética, ele merece sem dúvida ser colocado entre os responsáveis por isso.

Nota:
Este texto é uma livre adaptação de uma aula de Greg Bahnsen. Parte de seu conteúdo pode ser visto também em seu livro póstumo "Pressupositionalist Apologetics Stated and Defended" e em "A Christian Theory of Knowledge", de Cornelius Van Til.

terça-feira, 6 de julho de 2021

Nancy Pearcey: Cristianismo e a gênese da ciência.



Para Collin Russell, citado por Pearcey e Charles B. Thaxton (em "A Alma da Ciência"), o mito da hostilidade entre fé cristã e ciência é de criação relativamente recente. Foi na Inglaterra do final do séc. XIX que grupos se organizaram sob a liderança de Thomas H. Huxley com o propósito de acabar com a hegemonia cultural do Cristianismo, substituindo-o pelo naturalismo científico. Huxley sabia estar apenas substituindo uma religião por outra, pois era explícito seu desejo de criar uma "igreja científica".


"As obras mais venenosas vieram de John William Draper (1811-1882) e Andrew Dickson White (1832-1918) - obras estas consideradas pela maioria dos historiadores de hoje como sendo seriamente distorcidas por causa dos propósitos polêmicos dos dois autores."


O desprezo pelo mundo medieval, que tem importância capital nessa narrativa anti-cristã da história da ciência, começou a ser reabilitado pelo físico e filósofo francês Pierre Duhem, que concluiria em sua obra que as raízes da ciência moderna estavam no alicerce construído na Idade Média.


A NATUREZA DA NATUREZA


Em certo sentido, houve civilizações mais grandiosas do que a Cristandade medieval. O Egito e a Babilônia contruíram obras arquitetônicas memoráveis, por exemplo. A China rumava a consolidação de seu vasto império. E mesmo os árabes possuíam naquele momento uma civilização rival à cristã medieval em vários aspectos. 


Pearcey e os historiadores da ciência, então, perguntam-se qual teria sido a razão para que a ciência tivesse surgido na Europa Ocidental e não nessas outras culturas. 


O Ocidente está hoje tão arraigado de positivismo que trata como conhecimento certo que a ciência moderna seja o desenvolvimento "natural" de qualquer sociedade humana, quando não há absolutamente nenhuma evidência que corrobore essa tese. Antes, a singularidade da Cristandade forneceu uma soma de pressuspostos únicos que tornaram o labor científico possível e até incentivado.


"Toda investigação científica depende de certos pressupostos acerca do mundo - e a existência da ciência é impossível até que esses pressupostos estejam devidamente organizados. Conforme argumenta Foster, foi necessário que os pensadores ocidentais conferissem à natureza o caráter e os atributos que a tornaram um objeto possível do estudo científico antes da instituição da ciência em si. Como diz Whitehead, 'a fé na possibilidade da ciência' precedeu o desenvolvimento da teoria científica propriamente dita." 


Foi preciso que os cristãos, em suas reflexões filosóficas em diálogo com filósofos vindos do paganismo acerca da realidade criada por Deus, desenvolvessem conceitos distintivamente cristãos da realidade. Foi preciso que os cristãos medievais pensassem sobre qual é a "natureza da Natureza", em perspectiva de suas meditações sobre qual é a natureza de Deus e do ser humano.


1. A natureza é real. 


Enquanto hinduístas atribuem a realidade à ilusão de Maya e outros monistas atribuem a diversidade dos fenômenos à manifestações do Absoluto, o cristianismo tem a Criação como um objeto real que poderia ser estudada.


2. A Criação é Boa.


Em Gêneses 2, Deus olhou sua Criação e disse que era "boa". Uma parte considerável dos gregos, por outro lado, acreditavam que o mundo material era ligado "ao mal e à desordem". Mesmo o trabalho manual na Grécia era uma atividade relegada aos escravos. Para budistas, a vida é sofrimento, razão pela qual o budista não deveria perder tempo com os interesses dos cientistas, buscando atingir o Nirvana, abandonando o ciclo do sofrimento. A atitude do judaísmo e do cristianismo, por outro lado, é a de gerência da realidade criada, vendo a humanidade como mordoma da obra de Deus. E especialmente a Reforma Protestante desenvolveu conceitos de vocação (mesmo fora da esfera explicitamente religiosa) e ética de trabalho.


3. Deus e sua Criação não se confundem.


Diferentemente das crenças de religiões animistas e panteístas, o Deus cristão não se manifesta através nem se confunde com aquilo que Ele criou. Ele é absolutamente transcendente, mantendo sua singularidade mesmo quando decide revelar-se ao ser humano. Os cristãos podem reconhecer sua Existência nas coisas criadas através de seus efeitos, tão somente. Em algumas religiões pagãs, o sol, a lua, os planetas e outras coisas criadas são deuses em si. O cristianismo pôde revogar o 'status religioso' da natureza, "desdeificando-a", eliminando um empecilho na atitude em relação a ela. 


4. A Natureza e o Caráter do Criador.


Diferentemente dos pagãos, o Deus cristão possui algumas características que foram essenciais para que o ser humano pensasse a Criação como consequência de seu caráter.


Primeiro, como já dito, Deus é transcendente, não se confundindo com sua Obra. 


Segundo, esse Deus tem uma natureza e um caráter constante. Sendo eterno, Ele não muda de opinião e não tem contradições em si. Por isso ser verdade, o cristão entende a Criação como tendo unidade e coerência. Não há uma luta entre deuses rivais, como entre os deuses gregos e os titãs. O monoteísmo foi uma pressuposição essencial para o desenvolvimento da ciência. Foi a constância de Deus e de seu caráter que pôde-se desenvolver o conceito de "leis eternas" que extrapolavam o aspecto meramente moral, conferindo ordem ao universo mesmo diante de sua diversidade. Os cientistas cristãos buscavam a ordem unificada em fenômenos distintos.


"Os primeiros cientistas não argumentavam que o mundo era ordenado por leis e que, portanto, devia existir um Deus racional. Antes, sua argumentação era que havia um Deus e, portanto, a ordem do mundo devia ser determinada por leis."


Essa ordem na natureza, com todos os fenômenos naturais aparentemente caóticos e muitas vezes assustadores, foi algo revolucionário.


5. Uma Criação fixa e proporcional.


Não apenas a Criação é ordenada por leis, aos olhos cristãos, mas essas leis poderiam ser exprimidas matematicamente. O Deus bíblico criou o universo 'ex nihilo', tendo controle absoluto sobre ele. Para Platão, por outro lado, o criador seria um demiurgo que introduziu as Formas em unidades do mundo material e caótico; a existência tanto das formas quanto da matéria seria independente do demiurgo, estando, portanto, além de seu poder. Por causa da natureza da matéria do ponto de vista platônico, o caos resistiria à ordem e eternidade das formas, sendo, portanto, uma criação imperfeita.


6. Conhecimento humano.


Finalmente, a natureza da Natureza não serviria à ciência caso o ser humano não fosse capaz de apreendê-la. Ou seja, é necessário acreditar que a razão humana é capaz de atingir determinadas verdades sobre a realidade. Essa epistemologia e essa antropologia seriam possíveis por ser Deus um Ser Racional e por ter dado ao ser humano, sua Imagem, o atributo da racionalidade. Foi essa pressuposição que deu ao ser humano o impulso prático de investigação da realidade. Não apenas o mundo é ordenado e constante, mas nós, que somos Imago Dei, podemos conhecê-lo.

[Nota: Este texto é um resumo do primeiro capítulo de "A Alma da Ciência" de Nancy Pearcey e Charles B. Thaxton. Decidi omitir algumas reflexões sobre tomismo e scottismo para que não se torne de difícil compreensão.]