Estava conversando com o amigo Gustavo Arnoni sobre uma discordância a respeito de um trecho do livro "Identidade e Sexualidade", que desejo apresentar de forma amigável. Deixo claro que aqui não há a menor hostilidade nem arrogância de minha parte, até porque eu não sou especialista, nem sequer acadêmico. Meu intuito é apenas o de informar. Eis o trecho:
" A igreja demora muito para discernir o Zeitgeist [espírito de seu tempo]. Estamos continuamente envolvidos com a luta contra o marxismo cultural — algo que foi, com certeza, um grande problema para a igreja cristã na década de 1980 no Brasil, mas que hoje simplesmente não faz mais nenhum sentido para nossos jovens e adolescentes. Como estudante e pesquisador da faculdade de filosofia de uma universidade federal durante dez anos, tive apenas 2 aulas sobre Karl Marx. Na filosofia elas não eram ministradas. Já não havia interesse nisso. No entanto, pergunte-me: a quantas aulas de pós-estruturalismo você assistiu? Quantos seminários sobre Michel Foucault? E sobre pós-marxismo? Sobre a escola de Frankfurt? Dezenas! Centenas de publicações, congressos, seminários e minicursos. Quando a Igreja evangélica descobrir o pós-estruturalismo, daqui a 50 anos, será tarde demais. Não porque estaremos intelectualmente defasados, mas porque teremos perdido uma geração inteira para os padrões intelectuais deste século." [p. 19.]
Embora o autor esteja certo em apontar a fraqueza do debate dentro das igrejas a respeito de pós-estruturalismo, eu acredito que há um uso inadequado do termo "marxismo cultural".
Primeiro, utiliza-se o adjetivo "cultural" aliado ao marxismo para que ele seja diferenciado da escola original. Há o marxismo e o "marxismo cultural", como categorias distintas, mesmo que detentoras de uma relação causal entre si. É o mesmo tipo de diferenciação que é feita entre os termos "justiça" e "justiça social".
Pelo contexto, acredito que o autor esteja inadequadamente considerando "marxismo cultural" como a difusão de ideias marxistas (clássicas), com maior ou menor consistência, pela cultura brasileira. Mas não é a isso que o termo se refere.
Segundo, o termo "marxismo cultural" busca identificar precisamente um conjunto de autores e movimentos que englobam exatamente aqueles apontados como mais relevantes para o debate na igreja pelo autor, i.e., Foucault e Escola de Frankfurt, mas também Gramsci e a Nova Esquerda - e talvez possamos incluir ainda Lukács. Ainda assim, absolutamente nenhum deles chamou-se a si mesmo de "marxista cultural".
"Marxismo cultural" é um termo convencionado por autores conservadores americanos e europeus para identificar pensamentos pós-marxistas, pós-modernistas e que guardam algo do marxismo original enquanto discordam dele em alguns pontos. Este termo é inadequado em certo sentido, não podendo ser considerado "erudito", ao mesmo tempo em que é útil para identificar alguns motivos religiosos das escolas sugeridas pelo autor, denunciando sua raiz na escola marxista.
Como explicou Gary North [1] em um ensaio traduzido para o Instituto Mises no Brasil, "marxismo cultural" é um paradoxo. Marx acreditava que a cultura é a macroestrutura erguida sobre a economia, i.e., que a cultura é um produto da economia. As linhas de pensamento identificadas pelos conservadores dentro da categoria "marxismo cultural" são escolas que acreditam em uma estrutura inversa, i.e., que a economia é o produto da cultura.
Para Marx, quando os modos de produção fossem modificados, a cultura seria modificados, razão pela qual aquele alemão não acreditava em uma revolução através da cultura. Os "marxistas culturais" acreditam que a revolução na economia só pode acontecer através de uma revolução na cultura. É claro, então, que neste quesito os marxistas culturais estão certos.
O pensamento marxista entrou em crise no fim da Primeira Guerra Mundial porque as profecias de Marx não se cumpriram. Ao invés de unirem-se internacionalmente como classe para tomar o poder das classes opressoras de seus países, os proletários uniram-se às classes burguesas, aristocráticas e religiosas de seus próprios países para enfrentar os países inimigos.
A partir dali houve uma discussão interna e os socialistas buscaram entender o que ocorrera, sendo obrigados a modificar algumas de suas teorias.
Foi assim que nasceu, por exemplo, o nazismo. Ao invés de crerem que os proletários fariam uma revolução internacionalista, a revolução mundial teria que ser movida entre nações, ou seja, ao invés de uma luta de classes, haveria uma luta de nações ou raças. Do marxismo eles mantiveram a crença de um eschaton imanentizado, com suas raízes ocultistas, e a crença de que o conflito, a luta, a guerra, a violência, conduz à evolução. Assim pensava Himmler.
Por outro lado, pensadores como Antonio Gramsci começaram a estudar as razões pelas quais o socialismo não obteve sucesso no mundo ocidental, contrariando todas as previsões. Seria a Rússia agrária e atrasada que inauguraria o socialismo, não a Inglaterra industrializada. Foi assim que vários marxistas chegaram à conclusão de que o cristianismo, a filosofia grega e o direito romano seriam os empecilhos para o "novo mundo" socialista. Se eles quisessem realizar a revolução no Ocidente, eles deveriam, primeiro, destruir esses três pilares, para que só então pudesse ocorrer uma mudança nas formas de poder.
A Escola de Frankfurt foi fundada por marxistas que refugiaram-se do nazismo. Eles perceberam que a classe proletária não poderia ser a classe revolucionária; antes, os proletários estavam satisfeitos com os avanços na qualidade de vida promovida pelo capitalismo. Aqueles pensadores, então, elegeram outras classes revolucionárias (negros, mulheres, homossexuais e até mesmo os criminosos). Eles utilizariam os marginalizados e "oprimidos" pela cultura ocidental para criar uma antítese e promover o conflito interno nos países que rejeitavam o marxismo chamado "ortodoxo".
É por essa razão que Jordan Peterson afirma que os pós-modernistas são filhos do marxismo. Embora eles não sejam marxistas ortodoxos, eles mantém determinados pontos do marxismo.
Finalmente, eu creio que a inadequação do termo como usado pelo autor Pedro Dulci não invalida sua percepção de forma genérica. É bem possível que a maior parte dos evangélicos não saiba o que "marxismo cultural" realmente quer dizer, confundindo-o realmente com as formas mais ortodoxas de marxismo e suas divisões internas, como leninismo, trotskismo, stalinismo, maoísmo, mas também a versão latino-americana, o bolivarianismo. Não obstante, ainda há trotskistas e maoístas no Brasil, dentro de partidos de esquerda como o PT. Inclusive, é por causa da diferença entre o marxismo ortodoxo e o chamado "marxismo cultural" que o PCO não se alia à causa LGBT, até porque, originalmente, os socialistas acreditavam que a homossexualidade era uma patologia causada pelo capitalismo.
Enquanto termo vulgar, de utilidade prática, o termo "marxismo cultural" busca identificar um fenômeno real através de sua ligação umbilical com o marxismo, como sendo parte de uma evolução dentro do movimento socialista internacional.
Nota: [1] North escreveu um livro chamado "Marxismo e a Religião da Revolução". Eis o texto ao qual me referi. https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1896&fbclid=IwAR0HhajMLS7-rJXgGV4Y9HX-O8DJx779i_zEOhv2h2jeH1FWUE74prtPz4s