Toda epistemologia, toda teoria do conhecimento, tem uma base metafísica, i.e., descansa sobre um conceito de ser. Mas também sobre uma fé pré-teórica, com respeito à autoridade última. Todo ser humano começa com um ato de fé e raciocina segundo essa fé.
O descrente começa com uma fé que nega Deus. Descartes começou com a existência de si, para só depois tentar provar a existência de Deus. A existência de Deus seria ou não comprovável por sua epistemologia. O cristão, de outro lado, começa com a crença de que Deus é.
Nos primeiros séculos é muito difícil encontrar autores que tenham desenvolvido um sistema epistemológico, mas há casos dignos de atenção e menção.
Vantilianos assumem que a epistemologia não-cristã entrou muito cedo na igreja, com os convertidos oriundos da Grécia e de Roma. Muito comumente eles traziam suas pressuposições consigo. Um exemplo é Justino Mártir (110 a 165d.C.), um teólogo que merece não apenas respeito, mas honra em diversos aspectos.
Justino foi um dos primeiros apologetas, um defensor da fé, e um dos primeiros a tocar na questão da epistemologia. Para ele, por exemplo, ser cristão e ser racional eram praticamente sinônimos, razão pela qual ele colocava Sócrates e Heráclitos em altíssima estima, ao lado de Abraão, a quem chamava de "bárbaro".
"E aqueles que viveram racionalmente são cristãos, mesmo que fossem ateístas; como entre os gregos, Sócrates e Heráclito, e homens como eles. E entre os bárbaros, Abraão, e Ananias, e Azarias, e Misael, e Elias, [...]" [1]Não apenas Justino identificou injustificavelmente o ser cristão com a razão, mas ao chamar até mesmo o patriarca Abraão de "bárbaro", temos evidência de que aquele apologeta, no segundo século, ainda falava como um grego nesse quesito.
A linha pressuposicionalista, por outro lado, afirma-se herdeira de Tertuliano e principalmente de Santo Agostinho. Cornelius Van Til escreveu especialmente sobre Agostinho. Sua visão sobre a Trindade como solução para o problema do Universal e dos Particulares foi um resultado de seus estudos sobre aquele Pai da Igreja. E Van Til defendia que Agostinho, em sua fase madura, abandonou os pontos mais essenciais de Platão.
Na Idade Média, temos Santo Anselmo. Em seu Proslogion, começa confessando que sua razão não levou-o a lugar algum. concluindo em sua oração que ele "não procuro entender o Senhor para crer, mas eu creio para que possa entender."
Voltando à linha que pode ser traçada até Justino Mártir, na Idade Média surgiu, primeiro, Abelardo, e depois Santo Tomás de Aquino, trazendo Aristóteles para a Cristandade.
Em Anselmo e Aquino há o crescimento da polarização que começou séculos antes e é aqui, na Baixa Idade Média, que o ponto de ruptura entre as duas premissas se aproxima. Vantilianos entendem que Anselmo conduziu à Reforma e ao calvinismo, enquanto a tradição de Abelardo/Tomás de Aquino conduziu à Contra-Reforma, ao arminianismo e ao modernismo [que é colocado aqui como um resultado da crise interna dos motivos-básicos do Escolasticismo e pela semelhança epistemológica, embora reconheça-se algumas diferenças fundamentais].
A CONTROVÉRSIA EM TORNO DE CALVINO.
O extenso debate sobre Calvino entre as duas tradições é delicado. Vantilianos e calvinistas tomistas querem o reformador para si. Encontra-se em Calvino elementos que várias das correntes posteriormente desenvolvidas usam para provar que o reformador francês era pertencente a sua própria linha: simpáticos e antipáticos ao Escolasticismo, supralapsarianos e infralapsarianos, tomistas e pressuposicionalistas, etc. são alguns exemplos.
Cada uma dessas correntes defende que nas obras do reformador de Genebra é possível encontrar elementos nos quais a autoridade do francês serve como endosso para a autoridade e historicidade de sua própria pressuposição.
Um grande problema, porém, jaz em todas essas controvérsias: tais reclamações só podem ser sólidas diante de uma exegese da obra do próprio Calvino - algo nada fácil de se fazer. Sobre determinados temas, Calvino não dá opiniões exaustivas, razão pela qual parte da argumentação dos partidários em disputa necessita de uma dose de especulação.
A controvérsia mais "atual" diz respeito ao posicionamento do reformador em relação ao Escolasticismo, que tem tudo a ver com o tema deste texto. Para os interessados nessas questões fora da academia, toda a questão parece carecer de um ponto de partida fundamental. A maioria dos comentadores ignora perguntas que deveriam ocupar as primeiras preocupações.
1. Afinal, o que é Escolasticismo?
2. Qual é a diferença, se existe, entre Escolasticismo Católico Romano e Escolasticismo Protestante?
Sem essas respostas, nenhuma conclusão sólida pode ser alcançada, pra começar.
A falta de comentários exaustivos de Calvino acaba abrindo espaço para o que vou chamar aqui de "imputação conceitual". Em vários lugares, o reformador fala de "lei natural", de "luz da razão natural" (ou "razão universal"), ou de "testemunho da natureza". Muitos estudiosos, portanto, rapidamente podem imputar suas próprias opiniões sobre Calvino a partir do uso dessa linguagem. "Se Calvino falou de luz natural da razão, ele está falando do que eu entendo por luz natural da razão".
Em virtude da falta de explicação detalhada, os calvinistas mais ligados ao tomismo têm, com justiça, a seu favor, a presunção de que devemos entender o posicionamento de Calvino segundo a opinião predominante em sua época, o que é bastante plausível. Se tomarmos esse aspecto em específico, sem uma exegese mais profunda, os vantilianos parecem em desvantagem. Tal tem sido a linha de argumentação de defensores da apologética clássica contra Van Til.
Alguns argumentam em meio a essa disputa que "Escolasticismo" deve ser entendido apenas como "método" teológico, sem compromissos teológicos e filosóficos específicos, como um conjunto de parâmetros para a discussão de tópicos doutrinários. Dentre estes, há aqueles que mostram, por exemplo, que Calvino utiliza a estrutura de disputas que se vê facilmente em Tomás de Aquino. Levanta-se também a utilização de terminologias distintamente escolásticas, às quais me referi dois parágrafos atrás. Dizem, ainda, que Calvino supostamente fez comentários de acordo com as "provas" tomistas para a existência de Deus, especialmente a noção genérica de que a existência de Deus pode ser conhecida a partir de seus efeitos, na relação de causa e efeito e nos momentos em que o reformador se refere ao "testemunho da natureza".
Em suma, tais estudiosos entendem que as opiniões vantilianas sobre esse tema não passam de mitos.
Não obstante, a compreensão dos argumentos pressuposicionalistas por parte de McGrath, Sproul, Fesko e outros é bastante questionável, do meu ponto de vista. Vantilianos argumentam basicamente que, apesar do uso desses termos tradicionais, Calvino tem um entendimento diverso daquele que antecedeu-o.
Mesmo vantilianos reconhecem que Calvino falou sobre um conhecimento "natural" de Deus, bem como de "lei natural". R. J. Rushdoony pessoalmente criticou Calvino e Lutero especificamente no tópico do jusnaturalismo. A dúvida, porém, é se Calvino entendia esses conceitos da mesma forma que os tomistas entendem. Lembremos que Calvino não teve a mesma educação teológica de Lutero. Quais foram os efeitos dessa educação diferenciada, se é que houve algum? E é esse o ponto onde vantilianos consideram-se sucessores de Calvino. Em geral, é motivo de dúvida se o próprio Van Til discordaria das muitas citações do reformador que são usadas contra sua própria obra.
Quando Van Til defende um rompimento de Calvino com o Escolasticismo, está se referindo, antes, a uma quebra em relação à tradição Escolástica influenciada por determinadas suposições filosóficas. Em certos textos, o filósofo holandês usa o termo "teologia escolástica", referindo-se mais especificamente a algo que inclui uma teologia específica, mais do que um simples método ou terminologia. Se há pontos de contato entre Calvino e o Escolasticismo enquanto método, não é algo com o que Van Til teria problemas.
Estava Calvino utilizando-se conscientemente de um método escolástico? Ele via a si mesmo nesse contexto? Em primeiro lugar, o estilo da escrita de Calvino era mais próximo do estilo dos humanistas de sua época do que do estilo escolástico.
Doutor Fesko, por exemplo, aponta um comentário do Salmo 19 de Calvino como evidência de que ele seguia a epistemologia tomista tendo as "provas" tomistas como exemplo. O texto do comentário, porém, diz apenas que a "criação os direciona aos atributos de Deus." Desculpem-me os tomistas, mas tal citação é muito inconclusiva. Vantilianos não negam que há uma revelação na natureza que conduz aos atributos de Deus; eles apenas interpretam tal revelação de forma diversa daquela dos tomistas.
Nem mesmo há uma negação absoluta dos vantilianos em relação a uma "teologia natural" - o importante é que não seja a tomista ou moderna. Mas será que Calvino tinha em mente todo o aparato metafísico aristotélico de Tomás?
Ao contrário de Tomás, que no segundo tópico da Suma tratou da existência de Deus (onde inseriu as "cinco provas"), Calvino em nenhum momento se preocupou em dar respostas "racionalistas" para a existência de Deus, nem nas Institutas, nem, até onde meus estudos permitem, em lugar algum.
Vantilianos não negam que exista uma diferença entre o "conhecimento natural de Deus" e o "conhecimento fornecido pela Revelação Especial". Entretanto, quando os tomistas falam do "conhecimento natural de Deus", eles estão falando da teologia natural segundo a tradição tomista. Van Til, ao contrário do que afirmam alguns de seus acusadores, nunca disse que o não-cristão não pode aprender absolutamente nada de genuíno, nem que o cristão não pode aprender absolutamente nada do descrente. James H. Anderson cita um comentário do holandês a respeito de Calvino.
"'Então [Calvino] completa: "Não obstante, os esforços humanos não são sempre totalmente infrutíferos a ponto de não conduzirem a algum resultado, especialmente quando a atenção deles é direcionada a objetos inferiores [mundanos]. Nem, mesmo em relação a objetos superiores [divinos], embora eles sejam mais descuidados na sua investigação, eles deixam de fazer algum tímido progresso. Aqui, contudo, sua habilidade é mais limitada, e ele nunca está mais consciente de sua fraqueza do que quando tentam ir além da esfera da vida presente'.
Desta citação podemos ver que Calvino está querendo dizer que todas as interpretações do homem natural são em última instância igualmente insatisfatórias, que existe um sentido no qual ele tem algum conhecimento sobre tudo, sobre Deus e sobre o mundo, e que nesse sentido ele sabe mais sobre o mundo do que sobre Deus. Esta distinção não é apenas verdadeira, mas fundamental que se faça. Muitos descrentes têm sido grandes cientistas. Comumente descrentes têm um conhecimento melhor das coisas deste mundo do que cristãos têm.
(...)A única distinção que realmente nos ajudará é aquela que Calvino desenvolveu, a saber, que de um ponto de vista último o homem natural não conhece nada 'verdadeiramente', mas de um ponto de vista relativo, ele sabe algo sobre todas as coisas."
Como Anderson enfatiza, o pensamento de Van Til tem muito mais nuances do que enxergam seus críticos. Van Til explica que, mesmo tendo algum conhecimento até mesmo sobre a divindade, em última instância, o conhecimento do descrente é inválido.
James H. Anderson tem estudado todos os livros escritos contra Van Til e encontra neles abundância de interpretações fracas e - mais importante - absolutamente nenhuma novidade.
O vantilianismo não é sequer totalmente incompatível com diversos argumentos cosmológicos. Na verdade, em pelo menos uma ocasião[2], Gordon Clark zombou de Van Til precisamente por essa razão.
Historicamente temos também de lidar com o Escolasticismo Protestante. Em termos de método, qual é a objeção feita pelos vantilianos? Muito pouca. As criticas vantilianas focam os aspectos pelos quais o Escolasticismo tornou-se paulatinamente racionalista.
Finalmente, a existência de pontos de contato entre Calvino e Tomás não deveria sequer ser motivo de surpresa. A verdade é que, como bem demonstrado no livro "Origens Intelectuais da Reforma Protestante", de McGrath, em muitos sentidos, a Reforma é uma herdeira, um fruto das discussões escolásticas. Nem em qualquer momento se duvida que há discordâncias importantes em determinados temas entre o filósofo católico romano e o reformador francês.
Fica a questão: especificamente em Calvino, até onde existia Tomás em seu pensamento?
Entre os claros pontos de concordância e os claros pontos de discordância há um hiato de incertezas que só podem ser diminuídas com estudo diligente - algo que leitores "leigos" de facebook não podem fazer. A controvérsia a respeito de Calvino e Escolasticismo é um tema sério que não pode ser debatido sem um rigor apropriado, com exegese do próprio campeão francês.
NOTAS:
[1] ver "First Apology", V. Citado por R. J. Rushdoony, em "Word of Flux", p. 37.
[2] ver "Em Defesa da Teologia", de Gordon Clark. Clark não cita Van Til nominalmente, mas é a ele que Clark se refere ironicamente quando diz esperar por argumentos cosmológicos que o holandês não forneceu.
Vitor Marques